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Semana da Mulher: preconceito é o mesmo dentro ou fora da aldeia

publicado: 30/03/2017 15h32, última modificação: 29/06/2017 12h43

À esquerda do Amazonas desloca-se uma imensa e lenta massa de água. É o rio Negro, o mais extenso curso de água escura do mundo. Em suas margens, desde a bacia do Orinoco, entrando pela Venezuela e Colômbia até chegar à região onde está a cidade de Manaus (AM), vivem, desde sempre, os indígenas Barés. Eles são o “Povo do Rio”, um dos primeiros a terem contato com os colonizadores, já em 1700. Desde então, acossados pelos conquistadores, têm migrado rio acima e abaixo, driblando inimigos, tempestades e cheias. Mimetizados com as águas, eles resistem.

A tradição da luta e da resistência do povo Baré entrou cedo na vida de Mariazinha, como é conhecida a mestranda em Antropologia Maria Auxiliadora Cordeiro, uma das principais lideranças indígenas femininas e conselheira titular da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), entidade que tem assento no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Ah, isso começou quando eu ainda era adolescente”, lembra ela. “Veio de ouvir a mães e as avós”.

Afinal, desde os primeiros contatos, as mulheres desta tribo têm sido cobiçadas e tomadas pelos “brancos”, em uma estratégia para assimilar e enfraquecer a cultura Baré. “Os colonizadores achavam que, casando-se com nossas mulheres, estariam criando uma ‘nova raça”. Gente que teria a cultura intelectual europeia e a força e a tecnologia própria dos indígenas na lida com os desafios tropicais”.

Ela alerta que a decantada miscigenação, no entanto, não acabou com os conflitos internos do Brasil, como nação. “Não sabemos direito o que somos e o que queremos”, constata a líder indígena. Para ela, o fim desse conflito exige que, “entre outras coisas, a gente se aceite como brasileiro, independentemente de quem sejamos: branco, indígena ou afrodescendente”. Isto é, que não somos europeus nascidos no Brasil. Ou índios e negros aculturados, e sim brasileiros.

Não é uma tarefa fácil, uma vez que as várias etnias que formaram o país passaram por uma política de aniquilamento de suas diversidades culturais, que precisam ser resgatadas. “Com relação aos indígenas, para mim está clara a intenção, desde o início, de exterminá-los. Tanto que nunca nos deram autonomia. Manter indígenas sob a tutela do Estado, como crianças incapazes, durante décadas, foi uma tática para nos tirar a própria voz. Uma política que disseminou a discriminação e o ódio contra nós”. 

Como mulher e indígena, Maria Auxiliadora enfrentou todo tipo de discriminação ao sair da aldeia para se graduar em Gestão Pública. E foi em frente. Desde 2016, ela faz mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em Manaus, onde mora com o marido e três filhos. Maria Auxiliadora representa a Coiab também junto à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e foi coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab). 

É sócia-fundadora do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (Cinep), criado em 2006. Atuou ainda na Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas (Fepi), Secretaria de Estado para os Povos Indígenas do Amazonas (Seind), e no Programa Territórios da Cidadania (MDA). Atualmente, atua também no Programa de Agricultura Indígena Familiar da Secretaria de Estado de Produção do Amazonas (Sepror-AM).   

Por ocasião da Semana da Mulher, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher (8 de março), ela concedeu uma entrevista exclusiva ao site do Consea. Confira a seguir. 

Quais os maiores desafios para as mulheres indígenas na atualidade, tanto dentro de suas próprias comunidades quanto em relação à sociedade em geral (não índios)?

Maria Auxiliadora: Os desafios são os mesmos dentro e fora das aldeias. Ter um indígena ou ter uma mulher à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai), por exemplo, não vai mudar as coisas. O Estado ainda é governado por homens e brancos. Eles são a maioria no Congresso, na Justiça e no governo. Eles fazem as leis em benefício de seus próprios interesses. O que precisa é sensibilizar os outros segmentos do povo brasileiro a entenderem e participarem mais da questão administrativa, da gestão e da legislação do país. Precisamos despertar um outro tipo de olhar sobre e para os indígenas. 

E para a mulher também?

Maria Auxiliadora: Não queremos mais participar de discussões apenas entre mulheres. Hoje achamos que todas as questões referentes à mulher têm de ser discutidas no âmbito da totalidade da população, inclusive indígena. O debate sobre a violência contra a mulher, por exemplo, tem de incluir os homens. Caso contrário, não vai avançar. Todos têm de estar envolvidos. A discriminação não pode começar por nós mesmas. Isso foi plantado dentro da gente com muita violência. A convivência das mulheres indígenas com os soldados nas fronteiras, onde viviam os Barés, foi muito marcante Eles tiravam as mulheres da aldeia, estupravam e as abandonavam com os filhos. Havia um medo. Os homens impediam as mulheres de tratar com os “brancos” e de sair da aldeia, para tentar protege-las. Mas, nas aldeias, temos caciques e pajés mulheres. Enfrentamos essa realidade e hoje tenho orgulho de ser uma mulher indígena autêntica, de ser eu mesma. Nem melhor nem pior do que ninguém. 

Qual a importância da participação da mulher indígena no Consea? 

Maria Auxiliadora: As mulheres indígenas são as principais responsáveis pela nutrição das crianças, pela plantação e cultivo de mandioca e outras culturas tradicionais. Elas detêm grande conhecimento sobre sementes nativas e plantas. Além disso, existe toda uma tradição alimentar indígena específica para manter a saúde da mulher. Cada povo tem a sua tradição mas, em geral, toda menina também passa por muitos rituais ao se tornarem adultas e mães. São os chamados “rituais da moça nova”. Antes e durante a primeira menstruação, a jovem é acompanhada pela mãe, pela avó e pelo pajé. Ela ingere alimentos e chás selecionados e abençoados pelo pajé para garantir sua capacidade física de reprodução e sua saúde física contra as doenças do corpo e as que chamamos de “doenças do rio, da mata e do ar”.

Você, como pesquisadora, já discutiu a possibilidade de se criar uma universidade específica para preservar esses conhecimentos tradicionais indígenas?

Maria Auxiliadora: Há alguma tempo existe uma discussão para se criar uma universidade indígena. A diferença entre a universidade tradicional da Índia e uma eventual universidade indígena no Brasil é que a população originária, nativa daquele país, que sempre esteve lá, não está sendo exterminada, como ocorre aqui. Tem também a questão da apropriação indevida da cultura indígena para exploração comercial, sem que nossas comunidades se beneficiem disso. Essa discussão foi levantada em 2008, quando se pensou em criar um banco de plantas medicinais indígenas por meio do Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen/Embrapa). Constatou-se que os indígenas não possuíam a propriedade intelectual dos processos de identificação, manejo e uso dessas plantas. Então, a criação de uma universidade indígena, por si só, não evita a apropriação indevida dos conhecimentos indígenas e a falta de visibilidade no lucro com esse conhecimento. Precisamos de uma legislação específica, além daquela que existe para proteger a biodiversidade brasileira. Poderíamos avançar nessa questão por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), vinculado ao Ministério da Cultura – responsável por preservar, divulgar e fiscalizar os bens culturais brasileiros, garantindo sua utilização pela atual e futuras gerações. Aí, voltamos à questão de defender uma cultura brasileira de fato. Os europeus se aceitam como europeus e têm uma identidade. Independentemente de serem portugueses, franceses ou alemães, as questões culturais tradicionais sobrevivem até hoje e porque as tecnologias tradicionais são reconhecidas por todos. Isso ocorre no Japão, na China. Por que não no Brasil e na América Latina? Porque não se dá o devido reconhecimento às culturas originais. Isso só vai acontecer quando tivermos um ministério específico para os indígenas, como existe o da Igualdade Racial, em toda a nossa região.  

Fonte: Ascom/Consea