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Entrevista: "Poderíamos financiar a produção agroecológica a juro zero"
Mestre em Desenvolvimento Rural e doutor em Ciências Sociais, Niederle é membro do grupo de trabalho sobre Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e atua nas áreas de agricultura familiar, mercados agroalimentares e redes alimentares alternativas.
Nesta entrevista ao site do Consea, ele fala sobre as políticas públicas que ajudaram a tirar o Brasil do Mapa da Fome, os desafios para o país avançar na pauta da segurança alimentar e nutricional, as dificuldades que a agricultura familiar enfrenta diante do modelo de desenvolvimento agrícola hegemônico e sobre o papel do consumidor no questionamento dessa realidade.
“O sucesso de uma estratégia de inclusão produtiva e de garantia da segurança e soberania alimentar e nutricional é facilitado pela ação do Estado ― que se isentou de um papel mais proativo de regulação. Mas também depende da capacidade de engajar, além da sociedade civil, os consumidores”, ressalta o pesquisador.
Recentemente, o senhor publicou artigo no qual destaca o fato de a indústria alimentícia estar se apropriando de valores vinculados à agroecologia. De que forma isso se dá?
Este é um fenômeno globalmente conhecido como “convencionalização” da agricultura orgânica. De uma maneira bastante genérica, trata-se do modo como um conjunto de valores sociais que integram princípios éticos e ecológicos, e que se conjugam nisso que hoje chamamos de agroecologia, são reduzidos a um sistema técnico de produção. Trata-se de uma apropriação de valores na medida em que os atores dominantes no sistema agroalimentar incorporam e, concomitantemente, procuram atribuir um novo significado a práticas de produção e consumo que, historicamente, constituem a principal expressão de movimentos alternativos ao regime agroalimentar que estes atores começaram a edificar após a II Guerra. No âmbito da produção, isso se expressa no modo como o manejo de agroecossistemas diversificados é substituído por monocultivos regidos por sistemas técnicos especializados.
Quais as consequências dessa “convencionalização” da agricultura orgânica?
Com relação às dinâmicas de abastecimento, pode-se destacar a crescente circulação destes alimentos em cadeias globais, por meio das quais redes transnacionais de supermercados que ofertam produtos orgânicos com alto valor monetário agregado. Nota-se uma deterioração dos princípios ecológicos que regem os agroecossistemas, tornando-se mais evidente uma crítica ética, que é ainda mais forte quando a “convencionalização” está associada à restrição de acesso aos consumidores locais aos alimentos produzidos nos seus territórios. Esse fato tem se tornado cada vez mais recorrente, seja na produção de uva e manga para exportação, seja no extrativismo de castanha e açaí.
E de que maneira pode-se atuar diante dessa realidade?
Este processo não deve ser pensado como uma via única. Existem críticas, contestações, resistências. Se, em algumas situações, a agricultura orgânica se aproxima do modelo convencional, a agroecologia se reinventa continuamente. Parte desta luta se expressou, por exemplo, no campo institucional. Enquanto os supermercados pressionaram pela incorporação dos sistemas de certificação por auditoria externa, criando um verdadeiro mercado de certificadoras privadas, as organizações ecologistas conseguiram reconhecer os sistemas participativos de garantia, os quais envolvem produtores e consumidores. Hoje, esses sistemas não apenas estão consolidados, como também se mostram mais confiáveis. Além disso, passaram a ser legitimados pelos próprios supermercados, os quais incorporaram os alimentos com certificação participativa.
Na semana passada, uma reportagem produzida pelo The New York Times comentou a "invasão" nos países em desenvolvimento das comidas consideradas pouco saudáveis — industrializadas ou processadas — também chamadas de "junk food". Essa situação tende a se agravar?
Essa invasão bárbara não é novidade. Ela está associada a este regime agroalimentar constituído no pós-guerra. Basta lembrar os programas norte-americanos de “ajuda alimentar” dos anos 1950 e 1960. Com alimentos enlatados, congelados e repletos de conservantes, esta “ajuda” nos levou a internalizar padrões de consumo que, atualmente, repercutem nos recordes de obesidade e na crise de saúde pública desencadeada por doenças associadas à má alimentação. Além de uma ferramenta política mobilizada durante a guerra fria, tratava-se efetivamente de uma ajuda aos produtores americanos, garantindo aos mesmos preços agrícolas relativamente elevados. A partir dos anos 1990, o controle da distribuição de alimentos passou para as mãos dos supermercados, os quais se tornam conglomerados gigantescos. Há vários anos o Wall-Mart [rede norte-americana de supermercados de varejo], por exemplo, se mantém na ponta da lista das maiores empresas globais, à frente de todas as empresas de petróleo e informação. Entre outras coisas, isso se deve ao modo como os supermercados, como novo ator-líder do sistema agroalimentar – ainda que intimamente associado ao capital financeiro – conseguiu consolidar novos hábitos de consumo. A indústria alimentar tornou os alimentos um emaranhado de substâncias desconhecidas. Fomos levados a confiar em um sistema técnico que, hoje em dia, é crescentemente questionado pela sua incapacidade de ofertar comida saudável e segura. A novidade aqui são justamente as reações a todo esse processo. A reportagem do New York Times apenas colocou o dedo em uma ferida nunca cicatrizada. Até hoje, temos tratado do tema com analgésicos. Nenhuma ação mais efetiva foi feita para solucionar as causas do problema. Talvez porque as mesmas empresas que produzem agrotóxicos também produzem medicamentos. Por sua vez, o Estado se isentou de um papel mais proativo de regulação.
Qual o papel do consumidor nisso?
Agora ― antes tarde do que nunca ― os consumidores começam a reivindicar alterações. Isso tem estimulado sistemas mais sustentáveis e ecológicos de produção. As feiras orgânicas crescem rapidamente em todo o país. Ao mesmo tempo, demandam-se novas estruturas de governança para os problemas alimentares, associando Estado e sociedade civil. Isso também obriga os atores econômicos dominantes, incluindo os supermercados, a encontrar novas respostas para o que eu chamo de cinco “E” da “equação” alimentar contemporânea: como equacionar questões ecológicas, éticas, estéticas, epidemiológicas e energéticas. A convencionalização dos orgânicos é um tema nesta equação. Em alguns países proliferaram-se “organic junk foods”, ou seja, alimentos que, de acordo com a norma técnica, são considerados orgânicos, mas que são seriamente questionados no que tange aos seus efeitos à saúde. Estou falando, por exemplo, de batata frita orgânica, ou de produtos com elevados teores de açúcar. É por isso que a agroecologia vai além de um método de produção agrícola. É uma proposta de reorganização do sistema agroalimentar, o que implica, necessariamente, em um conjunto mais amplo de valores e princípios associados à soberania e segurança alimentar e nutricional.
A fome aumentou no mundo?
Este mês, a FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] divulgou seu relatório anual sobre o estado mundial da agricultura e da alimentação no mundo. Depois de quase 15 anos de retração, a fome voltou a crescer no mundo. Em 2016, tivemos 815 milhões de pessoas subalimentadas. Em 2015, eram 777 milhões. Ou seja, foram acrescentadas mais 38 milhões nesta conta em apenas um ano. Além disso, a combinação de preços altos, conflitos, guerras, migrações e condições climáticas extremas também aumentou o número de pessoas afetadas pela fome no mundo para 108 milhões em 2016. Em 2015, eram 80 milhões de pessoas. Não é em vão que a maioria das agências internacionais já está novamente reorientando suas agendas e recursos para os temas da fome e da pobreza. Por mais incrível que pareça, esta é a agenda da próxima década.
Como está o Brasil nesse contexto?
No Brasil, a rigor, não há nada de excepcionalidade nisso. As principais transformações ocorridas na sociedade brasileira no longo do último século estiveram diretamente associadas à recorrência de crises de abastecimento alimentar. Foi assim com as crises que antecederam a queda de Washington Luís [décimo terceiro presidente do Brasil e último presidente efetivo da chamada República Velha] e permitiram a improvável ascensão de Getúlio Vargas, o qual levou o Estado a investir na criação de órgãos como a Comissão de Abastecimento e o Serviço de Assistência de Previdência Social, responsável por criar restaurantes populares e Pontos de Subsistência para entrega de alimentos a famílias pobres. Em alguma medida, este problema também contribuiu para desestabilizar o governo de João Goulart, cujas reformas de base, sobretudo a reforma agrária, visavam reagir a carestia alimentar e a uma taxa de inflação que, em 1963, chegou a 83%. Os governos militares também tiveram que enfrentar o problema. Não exatamente por conta de uma estratégia que priorizava o combate à fome e à pobreza. Pelo contrário, como uma resposta para amenizar os efeitos concentradores de renda das políticas de modernização da agricultura. A partir do choque liberal dos anos 1980, o Estado transferiu o controle do abastecimento para o setor privado. Iniciou-se o processo de “supermercadização”.
O Brasil, que anualmente bate recordes de produção de grãos para exportação, corre o risco de voltar a integrar o mapa mundial da fome da ONU?
Existe uma falsa imagem de modernidade associado ao agronegócio exportador de grãos. Não existe nada de “pop” ou “tech” nesse tipo de estratégia. Ao exportar grãos com baixo valor agregado, estamos exportando recursos naturais (água, por exemplo) que seriam estratégicos para gerar novas dinâmicas de desenvolvimento sustentável. E, em algumas regiões, ainda estamos fazendo isso degradando rapidamente os recursos naturais, haja vista, por exemplo, a entrada da soja no bioma pampa, isso sem falar na Amazônia e no Cerrado. Essa lógica poderia ser melhor caracterizada como capitalismo de rapina ou acumulação por espoliação. Do ponto de vista econômico, não é preciso ser um especialista para compreender que, por área, a produção de soja possui um resultado econômico bastante questionável. A maioria dos cultivos alimentares resultaria em rendimentos econômicos muito mais satisfatórios na mesma área. É claro que se a gente pensar em propriedades com milhares de hectares, produção altamente mecanizada, e na cadeia agroindustrial até os supermercados, aí a soja começa a fazer sentido. No entanto, neste caso, o que não faz sentido é esta desigualdade no acesso à terra e tecnologias. É por isso que, diferentemente do que muitos seguem afirmando, acredito que a reforma agrária continua sendo uma pauta atual. Garantir acesso à terra para pequenos e médios produtores que possam, com tecnologias adequadas, produzir alimentos, torna-se uma escolha ética, ecológica, mas também econômica.
Um dos argumentos do setor de agronegócios é que apenas esse modelo de superprodução exportadora é capaz de suprir a crescente demanda por alimentos e, consequentemente, acabar com a fome no mundo. Como você analisa esse discurso?
A estratégia agroexportadora tem outro “calcanhar de Aquiles”: o risco que ela representa em face do aumento da instabilidade dos mercados globais. Os preços das commodities tiveram queda acentuada após o auge de 2008. Hoje eles estão próximos do patamar do começo dos anos 2000. Este é um fator que tem bloqueado a tão sonhada retomada da economia brasileira. Mas ninguém fala do problema resultante desta estratégia de sustentar a balança comercial com bens primários. O povo brasileiro é o grande garantidor da (falsa) competitividade que muitos destes grupos procuram sustentar a todo custo, inclusive com campanhas publicitárias.
De que forma esse sistema de produção industrial de alimentos impacta a agricultura familiar e a agroecologia?
Um dos impactos está associado justamente com o preço da terra, o que aumenta o custo de oportunidade para o agricultor familiar se manter na sua atividade. O aumento dos preços nos termos em que eles têm se dado é, individualmente, um bom negócio e, coletivamente, uma tragédia anunciada. Hoje, um pequeno agricultor com 15 hectares de terra apta ao cultivo de soja no sul do Brasil, pode ser um milionário. Muitos agricultores estão saindo do meio rural aproveitando esta janela de oportunidade. Com isso, além de ampliar a concentração da terra nas mãos dos agricultores mais capitalizados, estas áreas reforçam a dinâmica de “sojicização” do meio rural. Afinal, quem vai produzir feijão? Quem vai produzir nossa comida? Não se trata apenas de uma questão econômica, se trata de soberania e se trata da cultura alimentar brasileira. Infelizmente, esta é uma dinâmica estimulada pelo Estado.
Estimulada de que maneira?
Temos que reprogramar as políticas públicas. Não apenas aquelas relativas à regulação da propriedade da terra, mas o conjunto das políticas. Sempre fui crítico, por exemplo, à concessão de Pronaf com uma taxa de juros extremamente baixa para produção de commodities. Ao invés de financiar a produção de soja com juros de 2% ao ano, poderíamos financiar a produção de alimentos agroecológicos a juro zero. O custo para o Estado seria menor. Além disso, o Estado deixaria de gastar na saúde pública para contornar os efeitos nocivos do consumo de alimentos industrializados.
Como o senhor vê a atuação do Consea no debate das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional?
O Consea foi um espaço fundamental para construir o que tivemos de mais inovador em termos de políticas de segurança alimentar e nutricional. Somos referência internacional neste tema e, com isso, também assumimos responsabilidades. Não podemos agora nos tornar referência na desconstrução de políticas públicas. Seria importante se hoje tivéssemos condições de avançar na direção de uma nova geração de políticas, que eu pessoalmente defendo que deveria voltar-se para a criação novos mercados, circuitos curtos, redes alternativas que aproximam produtores e consumidores. Há uma enorme necessidade de reestruturar os sistemas de abastecimento. Por exemplo, ao invés de grandes centrais que implicam em altos custos de transporte e enormes perdas alimentares e energéticas, precisamos pensar em modelos descentralizados, articulando atores públicos com organizações sociais, cooperativas, associações, o pequeno varejo e grupos de consumidores. Como as próprias experiências do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar] demonstram, o sucesso de uma estratégia de inclusão produtiva e de garantia da segurança e soberania alimentar e nutricional é facilitado pela ação do Estado, mas também depende crucialmente da capacidade de engajar a sociedade civil. Além de movimentos sociais construindo novos mercados, precisamos engajar os consumidores de maneira mais assídua neste processo.
Entrevista: Francicarlos Diniz
Fonte: Ascom/Consea