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Viver - Em homenagem à Rosani Cunha

Dia de Finados, estou na Academia de Tênis, em Brasília, finalmente um final de semana livre sem ter o que fazer, lembrando tantos e tantas que já não estão conosco, eu que não pude homenageá-los de outra forma.
publicado: 03/11/2008 00h00, última modificação: 18/08/2017 10h44

Selvino Heck

Dia de Finados, estou na Academia de Tênis, em Brasília, finalmente um final de semana livre sem ter o que fazer, lembrando tantos e tantas que já não estão conosco, eu que não pude homenageá-los de outra forma. Acordo tarde, vejo uns filmes açucarados na TV, outros nem tanto, um com a Julia Roberts, interpretando Erin Brockovich, história real, que já vi umas dez vezes: uma mulher destemida, 3 filhos pequenos, na luta pela vida, empregada num escritório de advocacia, descobre a contaminação da água com cromo de um pequena comunidade por uma fábrica, o que faz adoecer centenas de famílias. O filme conta seu engajamento na luta pelos direitos dos moradores, até a vitória final, com condenação da empresa e gorda indenização.

Perto do meio dia, tomo meu chimarrão, descansado, é dia de final de Fórmula 1, só se fala de Massa e Hamilton. Dou uma zapeada, vejo a Band News, quem sabe alguma notícia nova, as eleições nos EUA, a crise econômica, etc. Olho as manchetes, e um soco no estômago: secretária do Bolsa Família morre em acidente em Buenos Aires. Não sei quem é, procuro detalhes. Daqui a pouco, a confirmação, imaginada, jamais desejada. É Rosani Cunha, Secretária de Renda de Cidadania, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), acidente na noite de sábado. Telefono para o Onaur Ruano, Secretário de Segurança Alimentar do MDS, para saber mais detalhes. Conta-me que o Nilson, marido da Rosani, gaúcho e colorado, está no hospital, fora de perigo, mais um amigo argentino deles.

Sentado na varanda, não consigo desligar e pensar noutra coisa. Que ano! Quantas mortes, pessoas conhecidas, companheiros e companheiras, amigos e amigas, acidentes estúpidos. Há umas duas semanas houve a reunião da Comissão Julgadora do Prêmio de Boas Práticas de Gestão do Bolsa Família, da qual faço parte por convite dela, a ser entregue dia 25 deste mês pelo presidente Lula no Palácio do Planalto. Rosani coordenou a reunião o dia inteiro, até a boca da noite, sempre dedicada, esforçada, qualificada, competente.

E lembro então do amigo Luís, ex-colega de seminário, falecido em abril de uma hora para outra com 50 anos. Do Frei Arno Reckziegel, em maio, de hepatite B, descoberta dois anos depois, quando já era tarde. Da dezena de companheiras e companheiros do TALHER e movimentos sociais de Rondônia, acidente de ônibus em julho. Da Dirce, da Secretaria Especial das Mulheres da Presidência da República, outro acidente, no interior do Rio Grande. Da Clara Scott, queridíssima companheira, em Porto Alegre, faz semanas, de câncer que sempre ia e voltava. Do companheiro Pilla Vares, grande intelectual e ex-presidente do PT de Porto Alegre, há menos de um mês. Todos cedo, muito cedo, cedíssimo, antes ou muito antes dos setenta de idade.

Vontade de chorar, de abraçar todos e todas, de não acreditar. 2008 era para ser o ano dos 40 anos contados a partir do movimento da juventude de 68 e da morte de Luther King, com a vitória de um negro presidente dos EUA. Ano do renascimento de sonhos, da recuperação de utopias, ano do futuro e da esperança.

Tinha lido no sábado um artigo de João Sicsú, Diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA, sobre a crise econômica, ele dizendo que é a hora do governo ou do Estado. Partia de Fernando Pessoa, de seus famosos versos ‘navegar é preciso, viver não é preciso’. E Sicsú dá uma interpretação diferente da que eu estava acostumado para o ‘preciso’. Para mim, o ‘preciso’ era sempre no sentido de necessário, de é preciso fazer, de que não há como escapar, fugir. Sicsú enxerga o ‘preciso’ como sentido, orientação, bússola, como rumo certo. Isto é, navegar é preciso: tem rumo para não se perder, tem que saber como e onde chegar, não dá para se perder no mar e ficar à deriva. Já viver não é preciso. Nunca se sabe onde se vai dar, em que porto vai-se aportar, que ventos vão surgir, que mudança de rumos é necessária ou queremos dar. Para a vida não há certeza, nem se precisa de certezas. É preciso viver sem precisão. Da vida fazem parte a dúvida, o inesperado, os amores que vêm e que vão, até os acidentes não previstos e os cânceres sem cura.

A vida é isso e tem disso. Assim que é preciso, aqui sim no sentido de necessidade, vivê-la bem, sorvê-la toda, inteira, enquanto é possível e depender de nós, não deixar escapar nenhum momento, nenhum gesto, nenhum carinho, nenhuma possibilidade de amar, porque amanhã, não sendo precisa, a vida pode não mais estar aí, ou estar apenas na lembrança de alguns ou de muitos, mas sempre lembrança, não presença, não continuidade real, não dimensão física.

A hora de dedicar-se aos outros é agora, assim como de amar. Mudar o mundo não pode ficar para amanhã, porque amanhã poderá não haver. Mesmo assim, as coisas boas, o amor desprendido, o olhar irmão da Rosani, do Luís, do Arno, dos 13 de Rondônia, da Dirce, do Pilla nos acompanham de alguma maneira, nos velam no nosso compromisso com a humanidade, com os mais pobres e desvalidos, como era o caso da Rosani e seu trabalho no Bolsa Família.

É preciso viver, porque viver não é preciso.

Selvino Heck é Assessor Especial do Presidente da República