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Políticas públicas ainda ignoram relação entre alimentação e saúde, dizem nutricionistas
Há mais de 101 mil pessoas em situação de rua no Brasil, majoritariamente em grandes cidades, segundo levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2015. Além do preconceito, da ameaça das drogas e da violência, elas enfrentam diariamente o desafio da fome. Por isso, é surpreendente constatar que as políticas públicas destinadas a essa população ignoram estar a alimentação diretamente relacionada à saúde, afirmam as nutricionistas Einsfeld Mattos e Vanessa Backes, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Para demonstrar como a dissociação acontece, apesar da consciência de alguns profissionais que atuam em políticas públicas acerca do tema, Einsfeld e Vanessa escolheram pesquisar os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (Caps AD), porque ali “estes indivíduos estão inseridos em um contexto de saúde”. O levantamento se concentrou na região do município de São Leopoldo (RS).
A partir de entrevistas com trabalhadores e usuários dos centros, as duas elaboraram o trabalho “(In) Segurança Alimentar e Nutricional e Direito Humano à Alimentação Adequada”, que chega a conclusões bastante claras, embora ignoradas no atendimento à população de rua. A primeira delas é a perda da capacidade de escolha alimentar, pois essas pessoas passam a depender de doações de alimentos. Em seguida, a perda da cultura alimentar é vista como consequência “natural” para a pessoa em situação de rua, por parte de usuários e de profissionais que atuam nos Caps. Em uma realidade de vida sem nenhum poder aquisitivo, parece fato consumado não haver nenhum movimento de escolha, reforçam Einsfeld e Vanessa.
“Ficamos totalmente dependentes da caridade alheia”, comenta o conselheiro Samuel Rodrigues – da Coordenação Nacional do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Para ele, que conseguiu deixar as ruas, essa dependência cria uma situação que aprisiona a pessoa em um submundo, no marasmo de não encontrar saída. Para romper esse ciclo, não basta vontade própria, ressalva, são necessárias políticas públicas. “Preciso dizer que a discussão política contribui para a formação do indivíduo. Você pode conhecer novas pessoas e esse conhecimento, no meu caso, contribuiu para que eu pudesse sair da rua”, diz ele.
Samuel nasceu no norte do Paraná, é filho de agricultores que foram expulsos do campo quando o plantio de café foi substituído pela criação intensiva de gado na região. Sem outra formação profissional, a família se viu, sem recursos, na dura realidade da Zona Leste, periferia de São Paulo. “Aí, foi o desencontro da vida, a família se desfez. Fui morar no Rio de Janeiro e, em consequência da falta de emprego, de toda uma falta de estrutura, fui viver nas ruas. Passei 13 anos nas ruas do Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, cheguei a trabalhar no Paraguai, colhendo algodão. Foram anos e anos perambulando, procurando algo que eu nunca encontrava”.
Segurança sanitária
A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
De acordo com a pesquisa porém, muitos usuários dos Caps relataram passar horas ou dias sem comer, além de ingerir qualquer tipo de alimento processado que lhes seja doado, mesmo aqueles com data de validade vencida. Ao serem questionados acerca da segurança alimentar, a tendência dos trabalhadores e usuários dos centros é pensar imediatamente na questão sanitária dos alimentos.
“Alimento seguro é um alimento que não vá fazer mal, não vá causar risco de infecção, risco de morte, de intoxicação”, afirma uma das pessoas entrevistadas que trabalham no local. Outra, reponde: “Um alimento que esteja dentro do prazo de validade, nas condições climáticas, seguro nesse ponto de vista físico, né. Já que é sobra, não vai estar na validade”. Para as pesquisadoras, respostas como essas evidenciam que está sendo ignorada a relação que envolve segurança alimentar como questão social e cultural. Nesse contexto, comer comida que foi jogada fora não é ter segurança alimentar, mesmo que a pessoa não passe fome.
Intersetorialidade
No Brasil, o direito à saúde se insere na órbita dos direitos sociais garantidos pela Constituição à população, em sua totalidade. E, se há consenso de que a alimentação está diretamente relacionada à manutenção da saúde, parece lógico que os dois caminhos deveriam ser trilhados conjuntamente. Não é o que ocorre. Segundo Einsfeld e Vanessa, algumas falas dos profissionais revelam o que os mesmos não fazem e poderiam fazer, como, primeiramente, acolher de forma ampliada os usuários do Caps. As pesquisadoras propõem que o tema faça parte dos procedimentos de atendimento providos pelos serviços públicos de saúde.
Para elas, a integralidade no cuidado em saúde aos usuários é um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que deve considerar as especificidades de pessoas ou grupos de pessoas, ainda que sejam minoritários em relação ao total da população. Nesta perspectiva, profissionais com capacidade de atendimento a diferentes demandas, com olhar ampliado e de forma resolutiva tornam-se necessários nos serviços de saúde.
Já para o conselheiro Samuel Rodrigues, a solução para atender a população de rua permeia muitas questões e é possível avançar em propostas, como hortas urbanas comunitárias, para que as pessoas tenham sua autonomia e autoestima recuperadas. “As políticas públicas não enxergam a gente. É fundamental implantar a Política Nacional para a População em Situação de Rua, conforme o Decreto 7.053 de 2009”, destaca ele.
Fonte: Ascom/Consea