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Comida de má-qualidade transforma presos do país em obesos e diabéticos
O Brasil gasta R$ 20,47 bilhões por ano com alimentação e infraestrutura para manter cerca de 711 mil detentos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Para José de Ribamar de Araújo e Silva, militante da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, é um preço alto a ser pago por um tipo de comida que não atende aos presos nem à sociedade, porque os transforma em pessoas obesas e doentes, penaliza famílias, acirra conflitos, rebeliões e mortes.
Segundo Ribamar, que foi conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e ouvidor de Segurança Pública do estado do Maranhão, a alimentação prisional é um dos fortes vetores de tortura que deixam sequelas graves, entre elas o acirramento de conflitos e mortes em penitenciárias. “Em março passado, visitamos o Presídio Agrícola de Monte Cristo, em Roraima. Naquele local já houve aproximadamente 50 mortes desde a rebelião de outubro de 2016 até a ocorrida em janeiro de 2017 . Quando chegamos, vimos que a grande quantidade de lixo jogada nos corredores eram bandecos [quentinhas]. A alimentação é de tão baixa qualidade que é refugada”.
Para ele, que hoje atua no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT/MDH), o sistema alimentar prisional é construído em cima de uma lógica que não é restaurativa, não é de ressocialização de infratores e criminosos, mas de punição sobre punição. “Nesta lógica, não basta que as pessoas sejam privadas de liberdade, é preciso que estejam mal alimentadas, que estejam mais expostas a todo tipo de doença, seja de pele, cardiológica ou diabética”.
Penalidades duplicadas
Nesse sistema, acredita ele, em breve tempo as enfermidades podem eliminar indivíduos vistos como rejeito humano, gente sem futuro ou serventia. O ex-conselheiro considera essa mais uma demonstração de força contra determinados segmentos sociais já historicamente penalizados pela violência contra seus direitos mais essenciais. Dentro das cadeias, ressalta ele, o ciclo de violência se perpetua.
“Parece repetitivo falar disso, mas o que se vê atrás das grades são os três ‘pês’: o preso é em sua grande maioria preto e pobre. Ou preta e pobre. Ou seja, o sistema prisional atinge novamente pessoas de grupos sociais que já têm sido segregadas ao longo dos séculos. Têm ficado por séculos fora das benesses, dos subsídios dos governos e das políticas públicas”.
Ribamar, licenciado em Filosofia, Teologia e com especialização em Economia Solidária (PUC/SP), milita na causa desde o início dos anos 80, quando começou na Pastoral Carcerária. Com base em sua longa experiência, afirma que desde então a situação piorou, apesar de a legislação brasileira ter registrado muitos avanços nesta área. “Por que ocorre isso? Porque muitas vezes a Justiça se ocupa mais com o ‘soldado raso’ do que com os barões do crime”.
Ele lembra, por exemplo, que há centenas de adolescentes que são apreendidos por crimes considerados de menor potencial ofensivo, acerca dos quais existem resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que permitiriam a conversão das penas em prisão domiciliar, “o que é fartamente utilizado para as elites, mas a fração preta e pobre do sistema prisional não é favorecida; às vezes é até o mesmo juiz, a mesma juíza que atribuiu esse tipo de direito [a alguém de classe média ou alta]. Não estamos contestando o direito, só queremos que a lei seja a mesma para todos os cidadãos”.
Furtos famélicos
Ribamar cita ainda casos de pessoas presas por roubarem alimentos. “Algumas, como verifiquei, são as mulheres detidas em Rondônia, na fronteira do Brasil com a Bolívia. Elas estão no presídio feminino de Guajará-Mirim porque fizeram contrabando de carne ou de gasolina – como vemos também em Roraima, onde pessoas são detidas pelo contrabando de gasolina da Venezuela”. Na sua visão, esses são furtos famélicos, feitos muitas vezes para socorrer filhos com fome.
“Mulheres são presas, retiradas das famílias por terem roubado comida. E essas condenadas, que não têm penas convertidas em prisão domiciliar, deixam seus filhos ainda crianças ou adolescentes passando fome pela ausência de provedores. Assim, como se vê, seja adolescente, mulher pobre, negros, o pequeno ‘avião’ é preso – enquanto os grandes traficantes ficam soltos com seus aviões de cocaína. Isso faz com que a gente entenda que há uma lógica de eliminação por trás do desleixo com a alimentação nas cadeias brasileiras”.
Cantinas
A alimentação está entre as reclamações mais constante e principais causas de rebeliões dentro de um sistema que Ribamar considera violador de direitos mais básicos, como o direito à alimentação, garantido na Constituição. “Muitos chegam ao ponto de não quererem comer e a família é que tem de prover o alimento. E são pessoas humildes, que não têm grandes sofisticações alimentares. Mesmo assim, devolvem grande parte da comida, por a qualidade ser tão precária. Preferem passar fome do que engolir aquela refeição de baixa qualidade, que chega em pouca quantidade e azeda”.
Nas cadeias, o fornecimento de alimentos é tratado não como um direito humano, mas como filão de recursos financeiros que jamais são revertidos em melhorias das condições carcerárias, afirma José de Ribamar. “Os estados estão financiando uma política de terceirização em que as empresas cobram o que querem, a seu bel-prazer, sem qualquer fiscalização dos órgãos públicos. Isso se reproduz na quarteirização, que é a criação de cantinas dentro do sistema prisional que praticam preços exorbitantes e direcionam o que se pode comer. Se não é prático ter suco, se investe em refrigerantes. Mesmo que os diabéticos não tenham condições de consumi-los, não há opção. E se majora os preços de alimentos mais nutritivos, como o leite”.
As cantinas são muitas vezes assumidas por presos mais influentes, por agentes do sistema prisional e até por membros do Conselho de Política Criminal, que majoram preços por uma tabela que não obedece a qualquer lógica de mercado. “Os preços podem atingir quase o dobro do valor mercado convencional. Então, eles trabalham com uma lógica de reserva de mercado, pois o consumidor não podem sair para barganhar preços, Esse é um grave problema que encontro quando sou convidado a visitar penitenciárias em todo o país”.
Obesidade e doenças
As refeições costumam chegar aos presídios mal-acondicionas, por volta das onze da manhã, para serem servidas somente três horas depois, à uma ou às duas da tarde. Apesar de custarem muitas vezes o dobro de uma “quentinha” vendida fora, os chamados “bandecos” contêm principalmente carboidratos, massas, alimentos mais baratos, com pouca ou nenhuma variedade de verduras ou legumes. Além de comer mal, a maioria dos presos também não tem oportunidade de se exercitar. O resultado são pessoas doentes, com problemas cardíacos, diabetes, artroses, dificuldades de mobilidade.
“Pra mim, é uma política de engordar gente para matar, como se usa frequentemente para o boi, o porco. Estamos fazendo o mesmo com as populações mais pobres, que são as mais encarceradas no Brasil. A diferença é apenas que não se come carne humana”. Ele destaca que desta forma, Estado e sociedade pagam caro para manter o sistema alimentar de qualidade questionada, violador de direitos e causador de doenças. E que vai desaguar em outro problema, que é o sistema de saúde carcerário.
Amamentação
Ribamar lembra que penas alternativas também não costumam ser concedidas a infratoras pobres que estão amamentando. “A lei prevê que detentas lactantes podem ficar com os bebês por um certo período de tempo após a gravidez. Vemos casos, mostrados na grande mídia, em que o benefício da prisão domiciliar é concedido a algumas mulheres, tendo em vista a amamentação ou o atendimento a filhos menores. Mas isso não vale para as encarceradas mais pobres”.
Em vez de receberem conversão da pena, essas mulheres têm escasseada a comida, para que elas logo parem de dar leite e este período seja abreviado. “Estamos reeditando a lógica das galés nos navios antigos, das senzalas da escravidão, e afetando mais diretamente as mulheres, os segmentos que já são mais vulneráveis do nosso país”, adverte.
Fonte: Ascom/Consea