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Agroecologia: “Sem prática, teoria não vale nada”, diz conselheira
Renomada pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Emma Siliprandi, representante da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e do Brasil na Sociedade Científica Lationoamericana de Agroecologia (Socla), adverte que a academia e a classe letrada precisma dialogar mais com os camponeses e camponesas.
Em entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Emma - que também é conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) - faz uma análise da agroecologia na América Latina e critica o patriarcalismo no meio rural brasileiro.
Do ponto de vista acadêmico, como é travado esse debate da agroecologia?
A agroecologia é um campo da ciência relativamente novo, que começou a se firmar no final da década de 80 com uma proposta de diálogo de saberes entre o conhecimento científico puro, criado nas universidades e academias, e o conhecimento popular com os homens e mulheres que fazem agricultura sustentável na prática. No caso destes, são conhecimentos tradicionais, eles conhecem o agroecossistema: o meio onde vivem, quais plantas, animais, condições de solo, etc. A academia geralmente conhece as condições em laboratório, de livros e estudos, e as pessoas que vivem disso conhecem a prática. Mas esse diálogo é muito difícil porque, por exemplo, dentro da academia tem um mito de que a ciência só pode ser feita em condições controladas. Tudo o que é considerado tradicional é chamado de superstição, conhecimento intuitivo, etc. Não é valorizado. Então, a nossa grande prioridade na academia hoje é convencer os próprios colegas, fazer o embate político dentro da universidade, e dizer que sem prática a teoria não vale nada. E que você precisa dialogar. É certo que a universidade tem muitos conhecimentos a oferecer também para os movimentos sociais, mas não se excluem, têm que ser feitos juntos. Essa é uma grande briga, porque hoje a agroecologia é muito minoritária nas faculdades, nas pós-graduações etc. Ela ainda é marginalizada, ainda é vista com um olhar como se fosse uma charlatanice. Nas escolas de agronomia, por exemplo, que é onde mais se localiza os cursos de agroecologia, é vista como se fosse uma coisa mais de militância social que propriamente de construção de um conhecimento novo, necessário e útil para se pensar a sustentabilidade.
Você pode fazer um panorama geral, dentro do possível, em relação à América Latina?
Dá para dizer que na América Latina existem 3 grandes áreas. No Brasil a agroecologia se desenvolveu por um caminho e história própria. Tem a história dos Andes, dos povos indígenas, que não é exatamente a nossa história, é outro ecossistema de convivência com a montanha e um clima totalmente adverso, culturas totalmente diferentes. E tem a parte da Centro América e do México, que também é outro agrossistema, outras culturas e histórias. Esses três grandes grupos têm os seus caminhos próprios. Tanto no México como na região andina, a questão indígena é superimportante porque os indígenas e camponeses e camponesas são quase um sinônimo. Porque quem faz agricultura nessas regiões são os indígenas. Tem também a agricultura comercial, as grandes plantações, o agronegócio. Na região do Equador, por exemplo, as grandes bananeiras e o cultivo de café, de cacau, tudo isso é feito por grandes empresas que usam a monocultura, trabalho assalariado, muito agrotóxico, etc. Mas a agricultura camponesa se confunde com a indígena, então é uma situação que a gente no Brasil não convive muito. Porque os nossos indígenas ainda são muito aldeados, muito separados do restante dos camponeses. Existe todo um movimento de articulação e integração, mas a problemática indígena no Brasil é muito diferente. É muito mais de direito a território, de demarcação das terras, para garantir o desenvolvimento de suas culturas. Mas nós já temos uma agricultura camponesa muito diversificada, dificuldades diferentes, um processo histórico diferente. A gente pode dizer que, contraditoriamente, no Brasil foi um dos países onde o movimento agroecológico mais tem se desenvolvido.
Em termos de políticas públicas?
Em termos de política pública, de organização dos movimentos sociais. Nós temos um movimento social bem forte no campo da agroecologia, que vem desde a década de 70 com os movimentos de agricultura alternativa, do qual a Fase foi uma das principais fundadoras. Depois isso foi encampado pelos movimentos sociais, como, por exemplo, o movimento sindical, a CUT, a Contag, Fetraf, o MST, as mulheres camponesas, as quebradeiras de coco babaçu. Então nós tivemos uma série de movimentos separados, que se juntaram em torno dessa bandeira da agroecologia no Brasil. Teve a fundação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em 2002, e os encontros que ela promoveu são marcos muito importantes de construção do movimento no Brasil. Então, eu acho que aqui a gente chegou a ter uma espécie de programa político comum da agroecologia, capitaneado pela ANA, mas também pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), que reúne esses técnicos e pesquisadores. Então a gente tem um movimento social com uma plataforma política de defesa da sustentabilidade, de um outro modelo de produção, de consumo também, que seja uma agricultura baseada em: unidades familiares e na equidade social e de gênero, no respeito aos demais povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas. Eu acho que nesse sentido a gente tem um programa político mais amadurecido que nos outros países, onde ainda é uma luta muito grande de resistência da agricultura indígena camponesa.
Você também luta pela equidade de gênero. Eu gostaria que você falasse sobre as problemáticas das mulheres nesse contexto da agroecologia.
A problemática das mulheres na agroecologia não é muito diferente da problemática na agricultura familiar como um todo. As mulheres têm muito pouca visibilidade, não são vistas como agricultoras, como produtoras rurais e, no entanto, elas participam de todas as atividades dentro da propriedade: o plantio da roça, o cuidado dos animais, a alimentação da família, os produtos que se faz para vender. Enfim, elas estão em tudo mas não são reconhecidas como produtoras.
Na agrocologia nós temos uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que as próprias práticas agroecológicas tendem a valorizar o que as mulheres fazem, diferente, por exemplo, de uma agricultura tradicional de agronegócio onde as mulheres ficam marginalizadas e pronto. Ninguém ouve falar de uma produtora de soja, por exemplo. Como dentro da agroecologia tudo o que se faz numa propriedade tem importância, o que as mulheres fazem também tem importância. A desvantagem é que nos nossos movimentos todos vêm de uma origem muito machista, movimentos camponeses que têm uma perspectiva de ignorar ou menosprezar a contribuição das mulheres, inclusive como sujeito pleno de direito. As mulheres podem ser consideradas, por exemplo, a dar opinião sobre a horta, os pães, biscoitos que elas fazem, mas não podem dar opinião sobre a questão econômica, a condução da propriedade, o gerenciamento, o investimento. E, no entanto, elas têm esse direito porque são também agricultoras, participam do conjunto das atividades e são cidadãs. Então é uma vantagem fato de que a agroecologia abre mais espaço para mulheres, mas também nos deparamos com os mesmos problemas da agricultura em geral.
E na sociedade como um todo, de um patriarcalismo, dessa idéia de que só que tem ideias e direito sobre elas e sobre a condução do mundo são os homens. Então, quando as mulheres estão se colocando nessa posição de um sujeito político, elas sofrem sanções e zombarias Se elas fazem alguma coisa errada, é mais errado que se fosse um homem fazendo aquilo. Elas estão sempre sendo lembradas que a política não é o lugar delas, que deviam voltar para casa e ficar cuidando da cozinha e das crianças. Então, isso é um dilema da gente.
Fonte: Articulação Nacional de Agroecologia