Representante de matriz africana defende alimentação adequada, tradicional, regionalizada
O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início na tarde desta quinta-feira (9) ao julgamento do recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-RS) que negou pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei 12.131/2004, que autoriza o sacrifício de animais em cultos das religiões de matriz africana. A sessão foi interrompida após o pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes. A data para a retomada do julgamento não foi definida.
Para a representante do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais e de Matriz Africana, Kota Mulangi, o tema causa estranheza por conta de preconceito e intolerância religiosa. Segundo ela, que também integrou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), outras religiões também fazem o abate de animais para rituais e alimentares.
Em entrevista ao site do Consea, ela explicou o significado e a importância da manutenção do direito de realizar o culto religioso à maneira como é feita nos dias de hoje. “Estamos defendendo o direito de ter uma alimentação adequada, tradicional, regionalizada”, afirma.
Confira:
Soberania alimentar
Essa discussão que nós estamos enfrentando começou dentro do Consea na 4ª. Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em 2011 quando definiu que o conceito de segurança alimentar, além de ser uma alimentação em quantidade suficiente, ela precisava ter quantidade e ser adequada a nossa tradição e à regionalidade. Formamos o Fórum em quatorze estados e fomos pra luta. Hoje, a luta é por soberania alimentar. O ganho da 4ª. Conferência de ter soberania reconhecida para os povos é de extrema importância. Quando digo isso, estou querendo dizer que, quando se analisa a alimentação de um povo, analisa-se a sua forma de ser.
Eu costumo dizer que, quando sirvo a comida no chão, estou garantindo que todos possam comer: aqueles que caminham, os que não caminham e, inclusive, os que rastejam. Quando como com a mão, garanto que aquele que está preso ou a criança possam comer igualmente. Já mantém o grau de igualdade e de horizontalidade. Quando não tenho uma pirâmide alimentar, mas uma mandala alimentar com a água no centro, eu digo a importância desses alimentos. Quando consigo fazer um abate tradicional, ritualístico, doméstico, estou garantindo tudo orgânico. Se tiver soberania, se puder produzir, o nosso beneficiamento leva a pensar que quem vai abater tem que estar preparado espiritualmente, tem que estar querendo alimentar o seu povo. Estamos defendendo o direito de ter uma alimentação adequada, tradicional, regionalizada.
Garantia de direitos
Pela primeira vez no Brasil, discute-se algo constitucional e pétreo que é a inviolabilidade dos cultos religiosos. Além disso, coloca o Brasil no contraponto internacional à Convenção 169 do qual ele é signatário.
Preconceito e intolerância religiosa
Vários povos e comunidades tem a questão ritualística com a alimentação. Nenhum pescador pesca e não é um ritual. Pescar é um ritual. O pescador pesca e ninguém persegue o pescador. No Natal, todo mundo come peru e ninguém lembra que o Natal é uma festa religiosa. Na Páscoa, matam-se milhões de peixes e é algo religioso, ninguém questiona isso. Quando as pessoas questionam o fato de que eu faço um abate ritualístico e tradicional, é racismo.
Estratégia mercadológica
Essa tradição foi destruída anos atrás justamente para que alguém pudesse produzir em massa e ter lucro. Não está se falando de religião. Está falando de política e economia. O fato de chamar de religião já é uma estratégia para discriminar. Quando o capitalismo soma-se com o cristianismo e estabelece que tudo isso era pagão e não deveria se manter, estava se instituindo o fim da produção para o consumo e começa a produção para o lucro.
Reconhecimento
Em primeiro lugar, é preciso o reconhecimento real e que somos um povo tradicional de matriz africana pelo Estado. O Estado precisa reconhecer que quem ficou aqui depois da escravidão não era gente sem visão de mundo, sem mitos. Nós temos tudo isso. A gente é gente. Nenhum povo que foi escravizado deixou de ser reparado. Nós não fomos reparados no sentindo de reconhecer que nós tínhamos perdido terra e identidade. O primeiro passo é reconhecer isso pra poder ter acesso a uma terra de uso coletivo para que possa plantar, que possa criar.
Políticas para abate
Não tem soberania alimentar. Hoje a gente já está na marginalidade. A gente precisa conduzir o animal vivo até o doméstico e não tem políticas pra isso e precisa que o animal chegue bem. Ele não pode ter nada quebrado, não pode ter machucado, não pode ter sofrido pra vir pra minha alimentação. Eu preciso ter uma garantia de logística de transporte, uma garantia de comercialização adequada. Os mercados públicos foram todos privatizados. Nós precisamos de mercados públicos adequados a esta questão.
As políticas de segurança alimentar só precisam ser adequadas. Somos defensores do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Estamos em todos os Conseas municipais e estaduais lutando para garantir logística, comercialização e beneficiamento.
Fonte: Ascom/Consea