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Entrevista: “É preciso derrubar o mito de que o produto artesanal não é seguro”

publicado: 14/06/2018 15h58, última modificação: 14/06/2018 17h12

“A legislação sanitária brasileira para alimentos é uma enorme ‘colcha de retalhos’ que manteve a agricultura familiar e comunitária numa espécie de ‘limbo’, ou seja, tentaram marginalizar e também criminalizar determinadas cadeias produtivas artesanais, em benefício da indústria de alimentos ultraprocessados”.

A avaliação é de Rodrigo Noleto, da equipe técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), que participará, na próxima quarta-feira (20), da plenária Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

A reunião terá como tema a “Regulação sanitária para inclusão produtiva na perspectiva da soberania e segurança alimentar e nutricional”. No encontro, ele falará sobre a complexidade do sistema regulatório no Brasil, com enfoque no sistema de regulação sanitária de alimentos de origem animal e vegetal.

“É preciso mudar a legislação brasileira, para que os órgãos de vigilância sanitária tenham uma atuação mais educadora e de amparo para com os produtores artesanais e familiares”, destaca Noleto na entrevista abaixo, concedida ao site do Consea.

Quais são os maiores desafios para a comercialização de produtos da agricultura familiar?

São muitos os desafios para a comercialização da agricultura familiar, pois é uma questão estrutural. São desde questões fiscais e tributárias, financeiras e creditícias, tecnológicas, organizacionais, ambientais e de regularização sanitária, pois não há uma distinção entre a produção e comercialização da agricultura familiar e a da agricultura patronal. Por mais que instrumentos legais tenham sido criados nos últimos anos, buscando atenuar essa situação, a dificuldade de articulação entre os diferentes setores governamentais impede que sejam pensadas soluções que atendam a agricultura familiar. Além desse aspecto estrutural, não há um setor da agricultura familiar, mas vários, com diferenças regionais, culturais e sociais tão grandes que o problema de acesso ao mercado na região Sul não deve ser tratado da mesma maneira para os agricultores do Nordeste ou da região Norte, onde as demandas são diferentes e as cadeias produtivas também. Outra questão fundamental é considerar a diferenciação das cadeias de produtos da sociobiodiversidade, que deveriam receber tratamento diferenciado por seu carácter ambiental, social e cultural ― produção sustentável, que agrega valor e gera incremento na renda de grupos tradicionalmente alijados do poder e sem acesso aos subsídios estatais.

Por que a regularização sanitária atual não atende aos produtores artesanais?

A legislação sanitária brasileira para alimentos é uma enorme “colcha de retalhos” que manteve a agricultura familiar e comunitária numa espécie de "limbo", ou seja, tentaram marginalizar e também criminalizar determinadas cadeias produtivas artesanais, em benefício da indústria de alimentos ultraprocessados. Os setores reguladores, associados a um legislativo extremamente conservador e relacionado ao agronegócio patronal, permitem pequenos avanços no sistema regulatório, que foi o que ocorreu nos últimos cinco ou seis anos. Porém, como a legislação é dispersa entre diferentes órgãos (Agricultura e Saúde), de acordo com a origem (animal ou vegetal) do produto ou com sua distribuição na venda, é quase impossível que a diversidade produtiva da agricultura familiar seja contemplada no atual modelo de regulação sanitária.

O que deve ser mudado na regularização sanitária para que os pequenos produtores consigam o registro da produção ou serviços?

Uma proposta interessante é realizar um grande debate nacional, que, no momento, não acredito ser factível. Em princípio, esse debate deveria envolver os diferentes setores governamentais com os representantes da economia familiar rural. O Consea tem um importante papel nessa grande mesa de diálogo, pois tem mandato, diversidade na sua representação e acúmulo suficiente para criar condições desejáveis de um diálogo intersetorial e democrático.

Como derrubar o mito de que o produto industrializado é mais seguro para a saúde?

Primeiro, é necessário enfrentar uma estrutura de mercado imensa, que controla mídia e governos, para demonstrar que não há nenhuma garantia de que o produto industrial, saturado de agrotóxico e rico em veneno, é saudável. Segundo, a estrutura arquitetada pelo Estado, para garantia da "qualidade" do produto industrial está completamente comprometida, pois os órgãos reguladores ainda focam o protocolo de segurança na estrutura do empreendimento, e não em procedimentos que garantam a sua qualidade. Exemplo disso é o modelo do sistema de inspeção federal para produtos de origem animal, considerado modelo pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento [Mapa], mas que sofre com as denúncias de corrupção e pela recusa do produto brasileiro no mercado internacional. É preciso derrubar o mito de que o produto artesanal não é seguro. Acredito que esse mito vai ser desconstruído aos poucos, com a maior divulgação dessa situação e de que o sistema atual não garante a qualidade do produto, seja em razão do seu discutível valor nutricional, seja em razão do comprometimento dos órgãos de regulação e do poder legislativo com os setores industriais.

Qual o caminho para a inclusão produtiva de produtos artesanais e da biodiversidade, garantindo segurança alimentar sem comprometer a saúde?

Além da necessária mudança na legislação brasileira, existe a premente necessidade de fazer com que os órgãos de regulação tenham uma atuação mais educadora e de amparo para com os produtores artesanais e familiares. É necessário que o Estado brasileiro possa voltar a enxergar a importância da diversidade da produção familiar na economia das famílias, não apenas para a sua subsistência ou combate à pobreza rural, mas também para ressignificar a alimentação oriunda da agricultura familiar e dar dignidade a esses povos.

Entrevista: Beatriz Evaristo

Fonte: Ascom/Consea