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Entrevista: 'Legislação sanitária é toda voltada para a produção industrial em grande escala'

publicado: 18/06/2018 13h41, última modificação: 20/06/2018 12h27

Como produtos enraizados nos hábitos de consumo locais e considerados como saborosos e seguros pela população podem ser classificados pelos parâmetros legais sanitários como “impróprios ao consumo humano”?

Esse questionamento sempre intrigou a pesquisadora Rosângela Cintrão. Mestre em Desenvolvimento e Agricultura, Bibi Cintrão ― como Rosângela é mais conhecida ― foi buscar a resposta num estudo de campo que fez em municípios da Serra da Canastra, em Minas Gerais. “Meu interesse de pesquisa era entender este aparente paradoxo”, explica ela.

A pesquisa de campo gerou a tese de doutorado “Segurança, qualidade e riscos: a regulação sanitária e os processos de (i)legalização dos queijos artesanais de leite cru em Minas Gerais”, defendida em 2016, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O trabalho busca desvendar a lógica que está por trás da regulação sanitária e das perseguições que dificultam a venda legalizada de queijos artesanais de leite cru, parte do modo de vida de milhares de produtores em todo o estado mineiro.

“A legalização [sanitária] exige investimentos acima das possibilidades das populações rurais que processam produtos artesanais em pequena escala, além de aumentar os custos de produção, o que nem sempre pode ser repassado para o preço final”, afirma a pesquisadora na entrevista abaixo concedida ao site do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

No próximo dia 20, Bibi Cintrão participará da reunião plenária do Consea, em Brasília, que terá como tema “Regulação sanitária para inclusão produtiva na perspectiva da soberania e segurança alimentar e nutricional”.

Como surgiu o interesse em pesquisar a relação entre a segurança alimentar e o queijo da Serra Canastra?

É importante distinguir entre “segurança alimentar e nutricional” e “segurança sanitária dos alimentos”, pois são coisas diferentes. Eu pesquisei o que chamei de “processos de (i)legalização sanitária” dos queijos minas artesanais. Meu interesse pela questão sanitária foi despertado a partir do contato com o “Manifesto Internacional em Defesa dos Queijos de Leite Cru”, do movimento Slow Food, do qual faço parte. Este manifesto, lançado em 2001, me chamou a atenção para a perseguição aos queijos feitos nas zonas rurais com leite não pasteurizado, que são parte importante da renda e do modo de vida das populações que os produzem e são também muitas vezes produtos identitários em suas regiões de produção. O manifesto menciona a existência de “controles sanitários globais” e de “marcos regulatórios discriminatórios e pouco sensatos”. Observa que “procedimentos de esterilização excessivamente zelosos” levam a uma “dieta de alimentos esterilizados”, que pode ter consequências negativas para nosso sistema imunológico e critica as restrições “à liberdade de escolha dos cidadãos” de optar por estes alimentos.

E por que você decidiu focar no estudo dos queijos?

Todas estas questões me intrigaram e me chamaram a atenção, porque eu costumava comprar queijos artesanais em feiras no interior e percebia que eram muito mais gostosos que os do supermercado, mas não entendia as causas desta diferença. E também não entendia porque era tão difícil achar estes produtos em supermercados, por exemplo. Depois fui descobrindo que uma série de outros produtos artesanais sofriam restrições semelhantes. Escolhi estudar os queijos porque considero que eles são uma espécie de “símbolo” dos problemas colocados por estas legislações hipersanitaristas, por serem produtos “vivos” por definição, dado que a flora microbiana é fundamental para suas características. Resolvi estudar Minas Gerais porque foi o primeiro estado a aprovar uma legislação sanitária específica para os queijos artesanais e pela importância cultural que têm os queijos naquele estado. E escolhi a região que chamei de “a oeste das Minas” (da qual a Canastra faz parte) porque tem um número bastante expressivo de famílias cujo modo de vida está ligado à produção de queijo. Meu interesse de pesquisa era entender este aparente paradoxo: como produtos enraizados nos hábitos de consumo locais e considerados como saborosos e seguros pela população podem ser classificados pelos parâmetros legais como “impróprios ao consumo humano”?

A partir da pesquisa realizada sobre os queijos artesanais de leite cru em Minas Gerais, quais foram as dificuldades identificadas para a legalização desse tipo de produto?

As dificuldades são muitas e não apenas para os queijos, mas para os produtos processados artesanalmente de uma forma geral e em especial para os produtos de origem animal, processados ou não. A legislação sanitária ― e também a formação dos técnicos especializados nas diferentes áreas ― é toda voltada para a produção industrial em grande escala. Ela só admite materiais e equipamentos industriais, recusando o uso de materiais naturais, como é o caso da madeira, por exemplo, que está presente na maioria das construções, equipamentos e utensílios utilizados para a produção de alimentos nas zonas rurais. Em vários casos a lei exige o inox, que é um material bastante caro. As exigências para as construções são desproporcionais, não se reconhece o uso das cozinhas ou as construções normalmente utilizadas. Os conhecimentos, as práticas e de uma forma geral os modos de fazer os produtos não são considerados e nem respeitados pela legislação. A exigência de exames laboratoriais é outra dificuldade, pelos custos e pela inexistência de laboratórios próximos. Assim, a legalização exige investimentos acima das possibilidades das populações rurais que processam produtos artesanais em pequena escala, além de aumentar os custos de produção, o que nem sempre pode ser repassado para o preço final. A obrigatoriedade de contratação de profissionais especializados como responsáveis técnicos é outro elemento que pode inviabilizar a legalização das produções em pequena escala. Minas Gerais tem uma legislação específica para os queijos artesanais que é um pouco mais razoável, mas mesmo assim continua pouco acessível para a grande maioria das famílias que produzem queijos nas zonas rurais daquele estado, estimadas em dezenas de milhares.

Que mudanças deveriam ser feitas na legislação para promover a inclusão de produtiva dos produtos artesanais que ainda têm dificuldade em obter certificação?

Os desafios para a construção de legislações sanitárias mais inclusivas são enormes e não há soluções fáceis, dado que temos um marco legal já estabelecido, mas também o próprio conhecimento técnico e científico, tudo isso voltado para a produção industrial em grande escala. Mas, por outro lado, temos no Brasil um importante patrimônio cultural, com uma grande sociobiodiversidade de alimentos e formas de processamento nas zonas rurais e nos pequenos municípios das diferentes regiões. Um grande passo já vem sendo dado, que é o reconhecimento da necessidade de legislações específicas para produções artesanais e/ou em pequena escala. A RDC 49/2013, da Anvisa, foi um marco neste sentido, não só pelo seu conteúdo, mas pela forma como ela foi construída, com um amplo diálogo com diferentes setores da sociedade. Acredito que para ser de fato inclusiva, seria necessária uma nova legislação, que partisse de outra lógica e reconhecesse tanto os conhecimentos e os modos de fazer tradicionais, quanto construções, equipamentos, formas de embalagem e de comercialização. Os próprios parâmetros de qualidade microbiológica necessitam ser repensados para este tipo de produto.

Como os produtores lidam com esses entraves na legalização do produto artesanal?

Temos que diferenciar de que tipo de produtores estamos falando, pois a diversidade é grande e cada vez mais a indústria vem buscando se apropriar do termo “artesanal”, tanto que já se usa a expressão “agroindústria artesanal”, o que a meu ver é um contra-senso, pois se é indústria não é artesanal. No que se refere especificamente à agricultura familiar, há alguns casos onde vem sendo possível o acesso à legalização, em especial através de uma maior organização das famílias produtoras em associações e cooperativas, com acesso a assistência técnica e a algum tipo de financiamento, mesmo assim com grandes dificuldades. Nestes casos, em geral foi necessário um aumento nas escalas de produção e o abandono de métodos artesanais para a implantação de agroindústrias ― embora pequenas ―, inclusive como condição para se adequar às normas sanitárias e aos padrões industriais exigidos. Estes casos são muitas vezes exemplares e contribuem para a renda das famílias envolvidas, assim como para a oferta local e regional de produtos às vezes mais próximos das culturas alimentares. Mas envolvem uma minoria de produtores e dependem de condições específicas para serem viabilizados, como capacidade de organização, existência de assistência técnica, acesso a financiamentos etc. Para a grande maioria das demais famílias produtoras, há outras duas alternativas: quando a fiscalização é forte, elas deixam de produzir para a venda nos mercados, produzindo apenas para o consumo, em alguns casos, ou realmente parando de produzir, daí o risco de estes produtos deixarem de existir. Em outros casos, onde a fiscalização não é suficientemente forte para reprimir a comercialização, os produtos continuam sendo vendidos de maneira informal, como acontece com grande parte dos queijos minas artesanais.

Por que produtos artesanais de qualidade ainda são vistos como risco à saúde pelos órgãos competentes?

Esta questão também não é simples de responder, pois envolve muitos aspectos. Por um lado, os órgãos competentes são obrigados a seguir a legislação e os produtos artesanais não se enquadram nas exigências legais, conforme mencionado anteriormente. Antes da atual “gourmetização” dos alimentos artesanais ― alguns deles virando artigos de luxo ―, o artesanal era associado ao atraso, visto como um resquício do passado que deveria desaparecer com o “desenvolvimento” representado pela indústria. Esta visão ainda prevalece em muitos profissionais. Uma outra questão é que o sistema alimentar dominante envolve a produção em grande escala ― da agropecuária às plantas industriais ―, transportada a grandes distâncias e distribuída em grandes supermercados, com grandes tempos de prateleira. E grande parte do conhecimento científico e tecnológico é majoritariamente voltado para viabilizar esse modelo, no qual a luta contra os micro-organismos assume muita importância, sejam eles patógenos ou mesmo aqueles que competem pelo alimento. Ou seja, a “vida” é um problema e os produtos químicos ― agrotóxicos, antibióticos, sanitizantes, conservantes, plásticos ― são vistos como uma “defesa”. A indústria avançou em eliminar os micro-organismos e a formação dos profissionais se volta de maneira importante para os riscos microbiológicos. A própria definição de “qualidade” acaba sendo sinônimo de “qualidade microbiológica”. Neste sentido, os produtos artesanais são vistos como maior risco porque são menos esterilizados e porque as relações causais com problemas de saúde são mais facilmente comprováveis, como no caso das toxinfecções. No entanto, este mesmo modelo de produção dominante deu origem a um conjunto de outros riscos, chamados de “riscos tecnológicos”, que envolvem tanto riscos à saúde quanto ambientais, cujas consequências podem ser mais graves, mas que são mais difíceis de serem comprovados cientificamente, como os diferentes tipos de câncer associados ao uso de produtos químicos. Mas parte dos riscos tecnológicos tendem a ser considerados pelos técnicos como “efeitos colaterais” ou como “riscos necessários” ao desenvolvimento. Há assim, a meu ver, diferentes pesos e medidas no tratamento dos riscos. E esta não é apenas uma questão técnica ou científica, pois envolve fortes elementos sociais, culturais e econômicos.

Fonte: Ascom/Consea