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Cercadas de água e sem ter o que beber, assim vivem famílias ribeirinhas
Dos altos da Bolívia, na Cordilheira dos Andes, o Rio Madeira traz até Rondônia volumosas massas de água, toras de árvores e o que mais passar pela frente. Volta e meia, o caudal extravasa para além das calhas e pode subir mais de 17 metros, como em 2014, última grande cheia. A enfermeira Lenira Cordeiro Gomes vive ali, na Comunidade Cojubim Grande, Baixo Madeira, cercada de água, construindo e reconstruindo edificações que são periodicamente carregadas pelas enxurradas. E, como em muitas localidades brasileiras, ela e a família enfrentam dificuldades no abastecimento hídrico.
“É uma ironia que a gente vive cercado de água, sofrendo enchente e não tem o que beber. Porque as águas dos rios estão doentes. Não é saudável, potável”, diz ela. Mesmo assim, garante não ter intenção de deixar o lugar. Conta que prefere ficar no local onde criou seus seis filhos e lutar para melhorar a vida de todos. “Nasci no Paraná, mas me adaptei bem à região. Amo Rondônia, já não troco por mais nada”.
Entre 6 e 8 de março, ela participou do Encontro Nacional 5ª+2, realizado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em Brasília, oportunidade em que trocou experiências com alguns dos mais de 300 participantes do evento. A seguir, a entrevista de Lenira Gomes.
Como tem sido a atuação social da senhora em Rondônia?
Sou presidente da Associação de Mulheres e Pescadoras Ribeirinhas de Cojubim Grande desde 2012 e vice-presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional de Rondônia (Consea-RO). Participamos de lutas importantes, como as que trouxeram telefone público, posto de saúde, escola pública de segundo grau para os ribeirinhos e até uma delegacia, que depois foi derrubada pela enchente de 2014. Nossa associação também ficou destruída e até hoje funciona sem sede, em um salão emprestado por um comerciante, pois o rio levou tudo.
Como está a segurança alimentar e nutricional na região?
Depois da enchente, foi aquela catástrofe. A maioria das famílias foi embora para as cidades. Algumas voltaram depois, mas o filhos permaneceram nos centros, moças, jovens, crianças, em busca de subsistência. Atualmente, temos alimentos, mas falta planejamento. A gente vive o dia a dia. Lá tem banana, mandioca, milho verde, a abóbora se planta muito. Precisa comer? Tira-se a banana, corta lá e come. Arranca a mandioca, cozinha, faz uma panelada de comida, frita peixe. Acho que precisaria ter acompanhamento de um nutricionista, por exemplo. Como técnica de enfermagem, me preocupo em levar saúde, acima de tudo, para as famílias. E para ter saúde nas famílias tem de ter educação alimentar. E o pior é a falta de água para beber e cozinhar.
Não tem água lá?
É uma ironia que a gente viva cercado de água, sofrendo enchente e não tem água. Porque as águas dos rios são doentes. Não é saudável, potável. Pelas contas dos governos, consta no papel que lá já teriam sido construídos não sei quantos poços. Mas eu não conheço. Depois tivemos uma ajuda municipal e estadual para o fornecimento de água. Depois, cortaram. Disseram que nossa comunidade não precisa mais de água, que tem água com abundância. Só que é desse tipo que eu falei. Água doente.
Que doenças tem a água dos rios?
Leishmaniose, por exemplo. Muito verme. Algumas pessoas fervem a água para tomar, mas a maioria coloca um pozinho chamado barrilha, que se compra em casas de produtos agrícolas. Quando o pó é jogado na caixa d água, a sujeira assenta, o barro desce. Aparentemente, é água limpa.Mas quando você pega o líquido na mão, vê que não é água saudável. É áspera, ácida, acho que causa acidez no estômago, no intestino. Tem alguma coisa que não está certa. O cabelo cai, dá escaras, dá barriga d’água, manchas na pele. Eu não uso para cozinhar e nem beber. Prefiro ter de carregar garrafões de 50 litros e trazer água tratada da cidade mais próxima. Só para a limpeza que uso água do meu poço amazônico.
O que a senhora achou do Encontro Nacional 5ª + 2?
Achei ótimo. Foi a primeira vez que fui convidada a participar de um encontro como esse, de grande proporção. Gostei principalmente quando falaram sobre alimentação, a educação alimentar. As proposta, principalmente as nossas, do Eixo 1 e Eixo 2, foram excelentes. O alerta é: vamos correr, abraçar a causa da segurança alimentar para diminuir a fome, que ainda tem muita. Indígenas e ribeirinhos são sofredores. Temos aldeias indígenas em que eles passam meses sem ter a oportunidade de ver alguém chegar com algo para comer. É muito duro. Já nós, da comunidade que fica somente a 32 quilômetros abaixo de Porto Velho, passamos a dificuldade com a água.
Como avalia a situação da mulher ribeirinha?
A nossa associação de mulheres e pescadoras ribeirinhas tem cerca de 86 associadas, em população local de cerca de 430 famílias. Há mais ou menos dois anos, fizemos um levantamento e dava em torno de 940 habitantes, 764 eleitores. Então, a gente vem se organizando. Mesmo assim, ainda é preciso dizer: “Avança, mulher! Você pode. Tem esse direito e o seu espaço é seu”. Eu digo sempre a todas as mulheres. Porque tem muita mulher ainda de cabeça abaixada, resignada. Muitas que apanham, que morrem, que se matam por falta de coragem. Não sou mais do que as outras, mas não deixo ninguém pisar no meu calo. Há situações que revoltam, me doem o coração.
O que, por exemplo?
Na minha região há um grande graneleiro e o tráfego de carretas é intenso. Ali há muita prostituição infantil. São meninas, meninas de 12 anos, 11 anos. E não tem nenhuma assistência. Além disso, já ocorreram casos de estupro, até por parte de padrastos. Procuramos dar auxílio às vítimas por meio da nossa associação. Uma vez, conseguimos ajudar a deter um suspeito, mantê-lo detido por um tempo. E agora eu acabei de ser eleita como presidente da associação. Vou tomar posse no dia 24 de março e começar imediatamente uma campanha para que o Conselho Tutelar possa estar lá na comunidade, atuando juntamente conosco na defesa das crianças.
(Entrevista: Ivana Diniz Machado)
Fonte: Ascom/Consea