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‘A comida azeda da cadeia custa mais caro que muitos pratos de restaurantes finos do país’
O Brasil conquistou respeito internacional com as novas tecnologias sociais aqui desenvolvidas, para garantir o importante direito à alimentação adequada e saudável, diz o perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT/DH), diz José de Ribamar de Araújo e Silva.
No entanto, a privação de alimentos e de água ainda é largamente utilizada no país como vetor de tortura em ambientes de privação de liberdade, como as unidades do sistema prisional ou socioeducativo, espaços dedicados a indivíduos com problemas de saúde (como hospitais psiquiátricos), hospitais de custódia, asilos para idosos e abrigos de crianças de rua.
O comentário foi feito pelo perito ao analisar os dados do Relatório Anual 2017, divulgado nesta quarta-feira (1º), pelo Mecanismo. De acordo com Ribamar, a terceirização do fornecimento de alimentos a essas pessoas também tem se tornado um mercado disputado, sem licitação transparente o controle é exercido de forma pouco eficiente por pessoas que atuam dentro das próprias instituições. “A comida azeda da cadeia custa mais caro que muitos pratos nos restaurantes do país”, garanto perito.
Sobre esses temas, José de Ribamar falou mais detalhadamente em entrevista ao site do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Veja a seguir.
O Relatório 2017 é o terceiro levantamento anual lançado pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, do Ministério dos Direitos Humanos. O que o senhor destacaria neste ano em relação à segurança alimentar?
Primeiramente, quero enfatizar que o relatório homenageou os 100 anos de nascimento do líder sul-africano Nelson Mandela. Ele disse que "ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de uma de suas prisões". Nós estivemos em várias delas em 2017, nos estados de Roraima, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Tocantins. O que vimos, após 130 anos da chamada “Abolição da Escravatura” no Brasil, foi um verdadeiro “Navio Negreiro”. Ali estão as pessoas que representam os elos mais frágeis da nossa sociedade, principalmente negros e pobres, sem falar das mulheres, que enfrentam violações sistemáticas do seu direito à amamentação. Se a mãe amamenta na cadeia, o encarceramento se estende ao filho. Além disso, elas estão sujeitas à repressão por meios violentos, com uso de spray de pimenta, que passa diretamente ao organismo do bebê pela amamentação.
O que revelaram as visitas às unidades prisionais?
Quando um perito busca identificar sinais de tortura, hoje em dia, não basta atentar para hematomas ou fraturas nas pessoas. Tem de olhar fatores a que chamamos de novos fenômenos de tortura, como a negação de direitos elementares de alimentação e fornecimento de água, que constatamos a partir da visita ao Presídio Central de Porto Alegre, ainda em 2015, e confirmamos depois, quando voltamos à Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em 2017, ou seja, de Norte a Sul do país. A negação de alimentação adequada e água se converteram em tratamento cruel e desumano, podendo constituir-se numa forma de tortura, se ocorrer de forma reiterada. Há locais onde se tem de decidir entre tomar água ou tomar banho.
O detalhe é que a alimentação e a água dentro do sistema prisional são mais caras do que aqui fora, nos melhores restaurantes. Por causa da terceirização do fornecimento de alimento à população carcerária. A terceirização faz com que não se pague apenas o custo da comida, se paga o custo da produção, do transporte, e tudo que encarece o alimento, mas não garante sua qualidade.
Quem está ganhando dinheiro com isso?
São grandes empresas que, frequentemente, não poderiam sequer estar participando deste tipo de serviço, pois constam no cadastro de inadimplentes do estado. Essas firmas, para economizar combustível, por exemplo, costumam levar todas as refeições do dia em uma só viagem. Então, o almoço, que será servido entre meio-dia e 13h, chega às 11h da manhã, juntamente com a janta, que será servida – fria e azeda – das 18h às 19h. Sem falar que as refeições não respeitam qualquer critério mais elementar de equilíbrio alimentar, com excesso de carboidratos em detrimento de outros componentes.
Quais as consequências?
Má-nutrição, obesidade e perigo para os diabéticos. As pessoas com diabetes, aliás, são obrigadas a enfrentar longos períodos sem alimentação, com isso entrando em hipoglicemia e chegando a desmaiar. O resultado é o que eu chamo de “falência múltipla dos órgãos”, pois vem a onerar os serviços públicos de saúde. E vai onerar também as famílias dos detentos mais pobres, que ficam dependendo dos parentes para levar a eles um alimento que tenha qualidade para suprir essa necessidade. Os que não têm família são mais vulneráveis ainda. Isso tudo ocorre seja pela exploração privada das cantinas dentro das unidades prisionais ou até mesmo pela exploração por parte de lideranças de facções, que fazem da alimentação um mecanismo de dominação.
Quais seriam suas recomendações em relação ao direito humano à alimentação adequada e saudável?
Há boas novas quanto ao direito à alimentação que são conquistadas aqui, no Planalto Central, mas não chegam lá na planície, nos estados. Precisamos fazer cumprir essas normas. Recentemente, por exemplo, conquistamos o HC coletivo, que foi aprovado no Supremo Tribunal Federal (STF), em que as mães, jovens e adolescentes nutrizes, que estão amamentando, deveriam receber, prioritariamente, penas alternativas ao aprisionamento. E está ocorrendo exatamente o contrário em muitos lugares, a mãe está presa com seu filho e a extensão da pena alcança agora bebês, inclusive todas as sanções alimentares que a mãe sofre são repassadas à criança, por meio de uma amamentação inadequada. É uma questão muito relevante com respeito a grávidas e lactantes, para a qual chamamos a atenção de todos. Um país que conquistou o direito à alimentação humana adequada não pode se permitir a esse tipo de coisa. É uma prática recorrente, inclusive aqui, no Distrito Federal, sede do Poder Central. Em todos os lugares que nós fomos a lei da primeira infância é preterida em relação a estratégia de encarceramento em massa.
Veja Relatório 2017 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Entrevista: Ivana Diniz Machado
Fonte: Ascom/Consea