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Racismo institucional impede o desenvolvimento do indivíduo e do grupo ao qual está inserido, diz conselheira
“A ausência do Estado no campo da saúde, da educação, da segurança pública impede que as famílias oriundas dos grupos sociais mais vulneráveis possam produzir o seu alimento ou ter acesso a ele de forma digna e soberana. O racismo institucional impede o desenvolvimento integral do indivíduo e do grupo ao qual está inserido”.
A avaliação é da socióloga Ana Lúcia Pereira, membro dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs) e integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
“As comunidades negras rurais e os agricultores familiares encontram enormes dificuldades de acessar as políticas públicas que lhes permitem investir na produção de alimentos em qualidade, diversidade e quantidade suficiente para o sustento de suas famílias”, diz ela.
Na entrevista a seguir, a professora da Universidade Federal do Tocantins defende as ações afirmativas como forma de correção das desigualdades raciais e como promoção da igualdade de oportunidades. "Temos que compreender que um país que se organizou durante 517 anos pautado na ideologia do racismo necessita de mecanismos especiais de combate, por isso a necessidade das políticas de ações afirmativas, bem como do monitoramento e avaliação dessas políticas, com a participação dos representantes das populações envolvidas”, destaca a conselheira.
Como se caracteriza o racismo institucional?
O racismo institucional caracteriza-se pela perpetuação de uma série de práticas discriminatórias que viola direitos das pessoas com base em critérios injustificados e injustos tais como a raça, o sexo, a idade, a opção religiosa e outros. Órgãos públicos e instituições estatais também podem operar de forma discriminatória e racialmente excludente. Quando o Estado não promove ações para a garantia dos direitos das populações mais afetadas pelo racismo; quando não investe em ações de promoção da igualdade racial; quando não faz o devido enfrentamento ao racismo, quando se omite e não pune órgãos ou pessoas que agem direta ou indiretamente para a manutenção da desigualdade de gênero, raça e etnia no país, estamos diante do racismo institucional.
De que forma o racismo institucional impacta a segurança alimentar e nutricional das comunidades mais vulneráveis?
O racismo institucional impede o desenvolvimento integral do indivíduo e do grupo ao qual está inserido. A ausência do Estado no campo da saúde, da educação, da segurança pública impede que as famílias oriundas dos grupos sociais mais vulneráveis possam produzir o seu alimento ou ter acesso ao mesmo de forma digna e soberana.
Como se materializa essa prática de racismo institucional?
O racismo institucional impede que essas comunidades tenham a posse de suas terras e de seus territórios e possam produzir o alimento de que necessitam. As comunidades negras rurais e os agricultores familiares encontram enormes dificuldades de acessar as políticas públicas que lhes permitem investir na produção de alimentos em qualidade, diversidade e quantidade suficiente para o sustento de suas famílias. Por isso os índices de insegurança alimentar leve, moderada e grave são muito mais elevados quando se compara brancos e não brancos. No caso das populações negras urbanas, o feminicídio, a violência da cidade, a fragilidade das políticas públicas de saúde e educação e o alto custo dos alimentos restringem a escolha de alimentos compatíveis com sua cultura alimentar.
Quais políticas públicas podem ser adotadas no combate ao racismo institucional?
Todas as políticas que garantam a proteção social: políticas de promoção da igualdade racial, políticas para as mulheres, políticas de promoção dos direitos humanos, políticas para a juventude, políticas de acesso à terra e regularização fundiária, políticas para os povos indígenas, política para os povos e comunidades tradicionais, políticas de segurança pública e, sem sombra de dúvidas, as políticas de segurança alimentar e nutricional. O mais importante é garantir que todas essas políticas sejam executadas por agentes públicos formados e conscientes de que o racismo é um fator estruturante da sociedade brasileira e que as políticas específicas possuem uma importância fundamental para a melhoria da qualidade de vida das populações vulneráveis.
O fato de termos poucos negros, indígenas e representantes dos povos e comunidades tradicionais nos três poderes do país não reforça a invisibilidade desses segmentos sociais, representando também uma forma de racismo institucional?
Sim. O racismo institucional também se expressa na valoração diferenciada dos grupos étnico-raciais: no polo inferior estão as mulheres, os negros, indígenas e representantes dos povos e comunidades tradicionais. A não participação desses segmentos nos espaços de poder, a sua invisibilidade e o não reconhecimento de seus direitos reproduz as iniquidades de nossa sociedade. Quando se trata da luta pela terra, podemos dizer que existe uma guerra declarada desde o período colonial, onde as vidas dos pretos, pobres, indígenas e quilombolas são ceifadas diuturnamente, sem uma ação concreta da Justiça Brasileira.
Qual o papel das ações afirmativas no combate ao racismo institucional?
São fundamentais porque, conforme a Lei 12.280/10, constituem-se em programas e medidas especiais adotadas pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades. Temos que compreender que um país que se organizou durante 517 anos pautado na ideologia do racismo necessita de mecanismos especiais de combate, por isso a necessidade das políticas de ações afirmativas, bem como o monitoramento e avaliação dessas políticas, com a participação dos representantes das populações envolvidas.
Como vê a atuação do Consea no enfrentamento do racismo institucional?
De forma indireta, o Consea tem atuado no enfrentamento ao racismo institucional, desde o ano de 2004, quando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios acusou que a população negra e os povos indígenas são os mais afetados pela insegurança alimentar e nutricional grave. Em 2004 os debates em torno da elaboração de políticas públicas com a vertente étnico-racial foram deflagrados no âmbito do Conselho, por intermédio de duas comissões permanentes, ambas criadas com representantes dos povos indígenas e das populações negras. Os principais programas e ações de segurança alimentar e nutricional que foram pensadas nos diversos órgãos de governo sobre esse tema foram fruto do trabalho desenvolvido em parceria com o Consea. Em 2008, sob a luz do Decreto 6040/2007, novos desafios foram colocados e a questão da insegurança alimentar e nutricional dos povos e comunidades tradicionais também passaram a ser discutidas no Conselho. Ainda que essas discussões aconteçam permanentemente, as recomendações e exposições de motivos sobre a questão da terra e do território que são enviadas aos órgãos do governo têm obtido quase nenhum retorno. A omissão ou o silêncio também se traduzem em racismo institucional.
Entrevista: Francicarlos Diniz
Fonte: Ascom/Consea