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O ato de comer enquanto prática política - Renata Menasche

publicado: 31/10/2014 12h24, última modificação: 29/06/2017 14h24

Por Revista IHU On-Line

"Pensar que temos o direito de lutar por uma cidade, um estado, um país, um mundo em que a diversidade seja preservada, em detrimento da padronização imposta pela indústria agroalimentar; em que todos possam ter acesso ao alimento bom (sabor), limpo (sem poluir a saúde ou o ambiente) e justo (correta e dignamente remunerado a quem produz); em que, entre os parâmetros da Segurança Alimentar que buscamos construir, está o respeito à cultura alimentar dos distintos grupos. Para mim, isso é pensar o comer como ato político." A explicação foi dada pela antropóloga Renata Menasche em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

De acordo com a professora, a alimentação passou a ser concebida como patrimônio cultural a partir da ampliação do entendimento do conceito de manifestações culturais, momento em que houve a valorização, em termos ideológicos, da diversidade cultural. Assim, as práticas e os saberes associados à alimentação passaram a ser entendidos como manifestações de grupos sociais específicos, associados a um determinado território. Estes saberes e práticas constituem-se em parte integrante da vida dos territórios e, portanto, estão inseridos nos modos de viver da população dos espaços geográficos em questão, expressando a identidade cultural destes grupos.

"A comida é, assim, constitutiva de relações sociais: vale lembrar a origem da palavra ‘companheiro’, que remonta à expressão latina cum panis, referente ao ato de compartilhar o pão. Se somos o que comemos, temos que nossa identidade se define pelo que comemos, mas também por onde, quando e com quem comemos, ou melhor dizendo, pelos significados que, no comer, partilhamos", enfatiza Renata Menasche. "É importante notar que não é o alimento em si o bem reconhecido como patrimônio cultural, mas sempre os saberes e práticas a ele associados, contemplando os lugares em que se realizam, as relações de sociabilidade neles implicadas, os significados através deles compartilhados", complementa.

Renata Menasche é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas - PPGA/UFPel e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PGDR/UFRGS. Suas atividades de pesquisa, ensino e orientações situam-se na convergência dos estudos da alimentação, do consumo e do rural. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura/GEPAC (http://www.ufrgs.br/pgdr/gepac/). É também conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

Confira a entrevista:

IHU On-Line - O que é patrimônio alimentar? Como o alimento se relaciona a um território e uma cultura?

Renata Menasche – Desde que a visão sobre patrimônio cultural se ampliou, deixando de restringir-se a monumentos e coleções de objetos, passou a contemplar um amplo leque de manifestações culturais: tradições e expressões orais herdadas (aí inclusos os idiomas); artes de espetáculo; usos sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e usos relacionados à natureza e ao universo; saberes e práticas artesanais tradicionais.

 

É nesse quadro, que se caracteriza a partir da valorização ideológica da diversidade, que também os saberes e práticas da alimentação, entendidos enquanto manifestações culturais (de grupos sociais específicos, inseridos em seus territórios), passam a ser reconhecidos como patrimônio. No Brasil, entre os bens registrados como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, podemos mencionar como mais diretamente associados a saberes e práticas alimentares o ofício das paneleiras de Goiabeiras [Espírito Santo], o ofício das baianas de acarajé, o modo artesanal de fazer Queijo de Minas e o sistema agrícola tradicional do Rio Negro [Amazonas]. É importante notar que não é o alimento em si o bem reconhecido como patrimônio cultural, mas sempre os saberes e práticas a ele associados, contemplando os lugares em que se realizam, as relações de sociabilidade neles implicadas, os significados através deles compartilhados.

É nessa mesma perspectiva que vale lembrar, no Rio Grande do Sul, os casos da Região Doceira de Pelotas e do Queijo Serrano (dos Campos de Cima da Serra), cujos processos de reconhecimento e registro estão em andamento. Quem já esteve em alguma dessas regiões perceberá como esses bens se constituem em patrimônio: fazem parte da vida do lugar, estão inseridos nos modos de viver de sua gente e expressam suas identidades.

IHU On-Line - De que forma a alimentação humana se torna um ato social e cultural?

Renata Menasche – Em um conhecido ensaio publicado originalmente no início do século XX, o sociólogo Georg Simmel chamou atenção para a refeição enquanto ato sociológico, na medida em que nela indivíduos realizam juntos aquele que talvez possa ser considerado, entre todos — dado que o que é ingerido por uma pessoa não poderá sê-lo por outra —, o ato mais egoísta: o comer. A comida é, assim, constitutiva de relações sociais: vale lembrar a origem da palavra “companheiro”, que remonta à expressão latina cum panis, referente ao ato de compartilhar o pão. Se somos o que comemos, temos que nossa identidade se define pelo que comemos, mas também por onde, quando e com quem comemos, ou, melhor dizendo, pelos significados que, no comer, partilhamos.

 

IHU On-Line - Em que espaço e tempo surgiu uma antropologia da alimentação? Qual sua trajetória no Brasil?

Renata Menasche – Podemos considerar que a antropologia da alimentação surgiu com a própria Antropologia. Em artigo que é referência para contextualizar essa história, Sidney Mintz mostra que, dado o comportamento relativo à comida ser tão estreitamente ligado ao que somos — e, assim, à diferenciação entre os distintos grupos humanos —, o tema chamou a atenção dos antropólogos desde sempre, estando presente já em escritos de representantes do evolucionismo cultural, no final do século XIX, assim como nos estudos etnográficos realizados por Malinowski entre os trobriandeses, no início do século XX. Nessa trajetória, da qual participam pesquisadores filiados às várias correntes do pensamento antropológico , há que mencionar a contribuição de Lévi-Strauss , que inaugura o entendimento da comida como linguagem, elegendo-a como “boa para pensar” .

 

No Brasil, como aponta Canesqui, a comida está presente nas pesquisas antropológicas ao menos desde os anos 1950, em estudos de comunidade, de cunho culturalista, então realizados. Nos anos 1970, os estudos sobre hábitos alimentares ganharam impulso, atraindo interesse de muitos antropólogos . Cabe ainda menção à distinção entre alimento (toda substância nutritiva) e comida (que possibilita expressar identidades), proposta por Roberto DaMatta nos anos 1980. Mais recentemente, a partir do final dos anos 1990, o fortalecimento desse campo de estudos entre nós é evidenciado pela constância de trabalhos submetidos à discussão nas reuniões promovidas pela Associação Brasileira de Antropologia.

IHU On-Line - Há uma queda de confiança dos consumidores em relação aos alimentos pro-duzidos pela indústria agroalimentar?

Renata Menasche – Com certeza, vários autores indicam esse fenômeno. Mas o leitor não precisará recorrer à literatura para dar-se conta dele, basta recordar a repercussão alcançada por alguns episódios de contaminação alimentar, ocorridos nos últimos anos. Eles podem ser tomados como indicadores de uma ansiedade contemporânea associada à alimentação, associada ao desconhecimento em relação ao que se come, por sua vez decorrente do atual distanciamento dos consumidores em relação aos processos de produção de alimentos e, ainda, da intensificação de sua transformação industrial. Nas prateleiras dos supermercados, deparamo-nos com o que Fischler jocosamente nominou Objetos Comestíveis Não Identificados (OCNI).

 

Na pesquisa que realizei entre consumidores de Porto Alegre, há alguns anos, a manifestação dessa desconfiança foi recorrente entre os interlocutores: o que é misturado ao pó que se transforma em sopa? O que é acrescentado aos grãos de milho verde, para que se conservem por tanto tempo na lata? Ou ao leite de caixinha, para que demore tanto a estragar? É interessante notar que, a partir da desconfiança em relação aos alimentos produzidos pela agroindústria alimentar, observa-se a valorização de alimentos classificados por atributos como artesanal, caseiro, fresco, natural, próximo, tradicional, atributos que remetem ao meio rural, um rural idealizado, considerado produtor de alimentos confiáveis e saudáveis.

IHU On-Line - Quais são as fronteiras alimentícias entre os meios rural e urbano? Em geral, que diferenças podem ser apontadas entre o campo e a cidade no que diz respeito às dimensões socioculturais da alimentação?

Renata Menasche – Inicialmente, é importante ter presente que as fronteiras entre campo e cidade são cada vez mais fluidas, pois, dadas as atuais condições de transporte e comunicação, é cada vez mais ampla a mobilidade, material e simbólica, entre esses “dois mundos”. Nesse quadro, talvez mais do que marcadoras de diferenças, temos que as práticas da alimentação podem ser tomadas como ponto de observação das relações entre cidade e campo, como abordagem para apreender valores constitutivos dessas relações.

 

Como exemplo, assim é que podemos associar as bucólicas vaquinhas em pastos verdejantes que povoam caixas de leite em prateleiras de supermercados, ou a padronagem de toalha de piquenique que estampa a embalagem do suco de laranja “com gominhos” a uma imagem idealizada do rural, hoje em dia bastante presente entre consumidores urbanos de camadas médias. Ainda, essa mesma “imagem dos sabores perdidos” compõe a demanda desses consumidores por alimentos comercializados em feiras, especialmente ecológicas, ou sua procura por atividades de turismo rural, entre as quais, no sul, têm destaque as festas e alimentos da colônia.

IHU On-Line - Como a alimentação aglutina posicionamentos políticos?

Renata Menasche – Comer é um ato político. A primeira vez que realizei plenamente o significado dessa frase foi em um encontro da rede Terra Madre, organizado pelo Slow Food. Ali estavam produtores de alimentos artesanais e tradicionais de todas as partes do mundo, trazendo a diversidade de suas cores, idiomas e sabores. Pensar que temos o direito de lutar por uma cidade, um estado, um país, um mundo em que essa diversidade seja preservada, em detrimento da padronização imposta pela indústria agroalimentar; em que todos possam ter acesso ao alimento bom (sabor), limpo (sem poluir a saúde ou o ambiente) e justo (correta e dignamente remunerado a quem produz); em que, entre os parâmetros da Segurança Alimentar que buscamos construir, está o respeito à cultura alimentar dos distintos grupos. Para mim, isso é pensar o comer como ato político.

 

O tema dos alimentos tradicionais me mobiliza e gostaria de chamar a atenção para ele, mais especificamente para os constrangimentos imputados à sua produção e circulação pela imposição de regulamentações sanitárias e fiscais instituídas a partir de lógicas que lhes são estranhas, orientadas por parâmetros característicos da indústria agroalimentar, não da produção artesanal (realizada em âmbito familiar por pequenos agricultores). O caso dos queijos artesanais produzidos a partir de leite cru é emblemático deste debate e merece o engajamento das pessoas e setores que se importam em preservar a diversidade e qualidade de nossos produtos tradicionais. Aproveito para chamar à participação em um importante evento sobre o tema que se realizará em Sergipe, agora em maio, o II Seminário sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais.

IHU On-Line - Gostaria de adicionar algo?

Renata Menasche – Apenas gostaria de deixar o convite para conhecerem os trabalhos do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura – GEPAC, que coordeno, disponíveis em http://bit.ly/1k51fEZ

Fonte: Revista IHU On-Line