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Pronunciamento em celebração dos 11 anos da Losan - Elisabetta Recine
Audiência Pública realizada na Câmara dos Deputados, em 15 de agosto de 2017
Chegamos aos 11 anos da LOSAN com a imensa responsabilidade, desafio e acima de tudo compromisso de honrar a história que gerou nossa Lei Orgânica. De lembrar o que foi conquistado, os resultados e tendo muito claro o quanto estas conquistas e resultados estão adquirindo contornos de história passada.
Vou lembrar nossas conquistas mas também me cabe registrar o que estamos vivendo – não porque cada um aqui não saiba, pelo contrário, cada um aqui é testemunha desta realidade.
Os quilombolas e os indígenas estão vivendo a véspera de mais um dia histórico da sua trajetória – amanhã o STF julga a Ação de Inconstitucionalidade do Decreto 4887 – a tentativa de legitimar o Marco Temporal que coloca em risco territórios reconquistados. Caso aprovada, esta ação terá repercussões trágicas não apenas para os quilombolas, para os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais mas para todos nós. Amanhã, deveremos ter uma grande concentração em defesa dos direitos dos quilombolas, povos e comunidades tradicionais, povos indígenas. Meses atrás, também tivemos o acampamento dos povos indígenas, que reuniu milhares aqui em Brasília, pela defesa de suas terras e seus direitos. O mesmo aconteceu com os pequenos agricultores, camponeses, agricultores familiares. O mesmo aconteceu com as mulheres, o mesmo aconteceu com aqueles que defendem o Sistema Único de Saúde, da Assistência Social, que defendem a diversidade de gênero, a juventude. E se o que se anuncia se confirmar, deveremos ter um movimento crescente de defesa das universidades públicas.
Sim, certamente a palavra que mais vou pronunciar será defesa, pois o que em 2015/16 forjou o lema Nenhum direito a menos continua ativo e as manifestações de indignação, as projeções das consequências nefastas para todos nós, as evidências e fatos claros não retardaram ou reverteram estas medidas.
Estamos redesenhando os caminhos para continuarmos defendendo a equidade, justiça, direito, diversidade.
Vivemos tempos de remédios profundamente amargos para aqueles que sempre sofreram as piores consequências de um modelo injusto e desagregador. A visão fragmentada entre o econômico e o social, decisões que desconsideram as evidências que quanto mais consequências sociais uma crise econômica gera, mais complexa e longa é a recuperação verdadeira. A crise política abriu novamente o alçapão da pobreza e, infelizmente, parece que nossa ausência do Mapa da Fome Mundial será breve. Não se trata de pessimismo ou fixação na metade vazia do copo.
O que temos hoje são cortes orçamentários drásticos, que comprometem seriamente programas e ações. Cortes que giram em torno de, no mínimo, só para dar alguns exemplos, 50% na Assistência Técnica Rural e, pasmem, 90% no Programa de Cisternas. Estão ameaçados o Benefício de Prestação Continuada, a Aposentadoria Rural. Em 12 meses, temos o saldo negativo de pelo menos 1 milhão de famílias no Programa Bolsa Família. Em nome da gestão eficiente, é possível pensar que um país que acumula 14 milhões de desempregados gerou qualquer situação que possa justificar ter menos 1 milhão de famílias sem o direito a uma renda mínima?
Mas o que está ocorrendo não se limita à redução orçamentária. Mudanças na estrutura da máquina do Estado, na gestão e nas relações com a sociedade têm repercussões igualmente sérias.
A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário tem levado à desaceleração, redução de diferentes ações que, articuladas, fortaleciam a agricultura familiar. A agricultura que nos alimenta, que pode gerar a experiência real da transição agroecológica, alimentos saudáveis para quem planta, para o ambiente, para as relações econômicas e sociais, para quem consome.
Estamos vivendo mudanças profundas na forma como a política pública e os programas são implementados. Demonstrações claras da concepção de país que orienta estes tempos que também vêm acompanhadas de violência institucional e repressão à participação, lideranças, manifestantes e militantes. Pessoas são agredidas, mutiladas, mortas por defenderem seus direitos, por existirem. Exemplos vergonhosos de racismo institucional, de diferentes formas de preconceitos, de desumanidade. Tempos que pensávamos que estavam distantes. É proibido pensar!
Programas que se mostraram absolutamente bem sucedidos, como o PAA, inclusivos, geradores de uma dinâmica local virtuosa para agricultores e comunidades, estão em risco. O PAA em risco aponta diretamente para o PNAE. A alimentação escolar se transformou no grande exemplo do que um processo participativo, que coloca o direito humano à alimentação adequada, a segurança alimentar e nutricional no centro da sua razão de ser, pode conseguir de resultados. Será que alguém tem a tranquilidade de afirmar, que o programa está seguro quando a agricultura familiar está ameaçada? Quando o PAA está ameaçado?
Neste sentido, um aspecto merece ser destacado – a Losan, o Sisan não apenas abriram espaço para programas melhores. A Losan e o Sisan demandam uma outra forma de fazer política pública. No nosso campo simbolizam e institucionalizam um processo democrático de participação, visão de mundo, de concepção de ações. Soberania, SAN e DHAA não são palavras, conceitos teóricos, mas conceitos que dirigem nossas ações. O processo social e político que nos levou ao Fome Zero, à Losan, à Política e ao Plano de SAN, à inclusão da alimentação na Constituição, que nos tirou do Mapa da Fome, é o mesmo processo que devemos percorrer atualmente.
Mantermos vivos os princípios de universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; de preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; de participação social em todas as etapas das políticas públicas, em todas as esferas de governo; de transparência dos programas, das ações e dos recursos.
Fazemos isso, fazendo nossa representação valer em um espaço de resistência legítima.
Por mais que a construção do Sisan seja complexa e muitas vezes não tenhamos respostas para inúmeras questões, é inegável o que avançamos. Temos uma rede consolidada de Conseas estaduais, e Caisans estaduais. Avançamos na relação entre Conseas e Caisans. Já estamos na ordem de centenas de Conseas municipais. À medida que o controle social se organiza, as demandas e propostas para a organização da gestão também se movimentam.
Precisamos garantir orçamento e financiamento para o Sistema, para suas instâncias. Gerar corresponsabilidade para este financiamento entre as diferentes esferas de governo. Sem este financiamento, o que transforma programas isolados em Política e Plano de Segurança Alimentar e Nutricional está ameaçado. Sem Conseas e Caisans atuantes não há Sisan.
O aprofundamento da legitimidade da nossa representação amplia nossa capacidade de leitura da realidade, de proposição e incidência.
Hoje está mais claro do que nunca o quanto é necessário e estratégico aprofundarmos nossa incidência e articulação com os Poderes Legislativo e Judiciário. Muitas das ameaças e dos retrocessos tiveram origem ou foram consolidados por decisões nestes dois Poderes. No Congresso, há inúmeros projetos que repercutem diretamente na qualidade da alimentação, na produção de alimentos e nos ambientes alimentares; por exemplo, a rotulagem de produtos transgênicos, a proibição de comercialização de alimentos não saudáveis nas escolas, a regulação da publicidade de alimentos para crianças, o uso de agrotóxicos e inúmeros outros. Fortalecer nossas parcerias com setores destes poderes comprometidos com nossa agenda é urgente.
Temos um arcabouço legal que nos garante uma governança democrática e intersetorial. Temos a legitimidade de uma agenda formulada por aqueles que plantam, colhem, coletam, pescam comida de verdade, por aqueles que vêm das matas, florestas, águas, campos, cidades, por aqueles que querem comer comida de verdade.
Temos claro o que é Comida de Verdade e é por ela que estamos aqui.
A[1] comida de verdade é salvaguarda da vida. É saudável tanto para o ser humano quanto para o planeta, contribuindo para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território, a alimentação de qualidade e em quantidade adequada em todo o curso da vida. Respeita o direito das mulheres, a diversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana/ povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, demais povos e comunidades tradicionais e camponeses, desde a produção ao consumo. Protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, o manejo das ervas e da medicina tradicional, a dimensão sagrada dos alimentos.
Comida de verdade começa com o aleitamento materno. Comida de verdade é produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica e com o uso de sementes crioulas e nativas. É produzida por meio do manejo adequado dos recursos naturais, levando em consideração os princípios da sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais e suas especificidades regionais. É livre de agrotóxicos, de transgênicos, de fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes.
Comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações. É aquela que considera a água alimento. É produzida em condições dignas de trabalho. É socialmente justa. Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado.
Comida de verdade é caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados. Precisa ser acessível, física e financeiramente, aproximando a produção do consumo. Deve atender às necessidades alimentares especiais. Comida de verdade é aquela que é compartilhada com emoções e harmonia. Promove hábitos alimentares saudáveis no campo, na floresta e na cidade.
Comer é um ato político. Comida de verdade é aquela que reconhece o protagonismo da mulher, respeita os princípios da integralidade, universalidade e equidade. Não mata nem por veneno nem por conflito. É aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e a paz entre os povos.