Entrevista com o Advogado Geral da União
Centro de Estudos Jurídicos da Presidência: O que levou V. Exa a optar pelo ingresso no serviço público federal? Qual foi a sua trajetória desde então?
Ministro Luís Inácio Lucena Adams: Meu pai, minha mãe e meu avô fazem parte da carreira pública e eu acabei optando por seguir as tradições da família. Em 1993, prestei um concurso para Procurador da Fazenda Nacional e, em junho do mesmo ano, tomei posse como Procurador-Regional da Fazenda Nacional, na 4ª Região. Em agosto, fui designado, juntamente com mais três procuradores da fazenda, para atuar nas causas da Advocacia Geral da União (AGU), que estava sendo estruturada naquele período. Acabei, então, me envolvendo na própria construção da AGU.
Posteriormente, trabalhei no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), fui Secretário-Geral de Contencioso da AGU, com o Gilmar Mendes, atuei em Porto Alegre, minha cidade natal, como Procurador Regional Federal designado, e logo fui convidado a ser consultor jurídico do MPOG. A partir daí, comecei a assumir muitas funções, como consultor jurídico do MPOG, Secretário Executivo Adjunto do MPOG e, hoje, Advogado-Geral da União.
Tive a excelente oportunidade de trabalhar diretamente com cinco ministros: Gilmar Mendes, Bonifácio Andrada, Guido Mantega, Nelson Machado, Paulo Bernardo. É uma vasta experiência no poder executivo, pois em três ministérios diferentes e centrais. Essa experiência é muito útil na AGU.
CE: V. Exa. é o primeiro Advogado-Geral da União oriundo dos quadros da Advocacia Pública Federal. Qual o significado e as expectativas decorrentes do histórico de V. Exa. enquanto Advogado Público?
Ministro: Primeiro, é um mérito da instituição. É importante perceber que as carreiras da AGU vivem um processo de construção muito significativo. Quando assumi como Procurador da Fazenda Nacional, a carreira de Assistente Jurídico ainda estava muito dispersa, não tinha uma organização central, cada ministério tinha sua carreira. Não existia a carreira de Procurador Federal e, embora a carreira de Advogado da União estivesse então prevista na Lei Complementar no 73, ela só foi efetivamente criada em 1998.
À época, eram Assistentes Jurídicos de Autarquia, Procuradores etc. Era uma miscelânea. Lembro-me que quando assumi o cargo de Procurador da Fazenda se falava, inclusive, da unificação de carreiras. O argumento principal era a existência de números absurdos de cargos.
Nesses 17 anos, a AGU entrou em um processo de reestruturação que foi espetacular. Nós começamos, progressivamente, a marcar presença nos tribunais, a reverter posições relevantes. Quando assumi como Procurador da Fazenda Nacional, em 1993, há dois anos havia sido instalado o Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, sendo que durante esses dois anos só havia um Procurador da Fazenda Nacional atuando ali, o professor Cesar Saldanha de Souza Jr., que fazia um trabalho espetacular.
CE: Em seu discurso de posse como Advogado-Geral, o senhor contou que eram então apenas quatro pessoas cuidando do TRF 4a Região. Como foi isso?
Ministro: É verdade. Entramos três novos procuradores para ajudar o professor Cesar Saldanha. E foi engraçado: ele tirou todas as divisórias da sala, colocou todos nós de frente para ele e disse que quem tivesse alguma dúvida podia levantar a mão. Delicadamente, dissemos que era melhor cada um ter sua sala para que o trabalho rendesse mais.
CE: Mas, com o tempo, a AGU foi crescendo e se definindo...
Ministro: Foi um processo interessante, um experimentalismo. A AGU, de lá para cá, começou a descobrir espaços. E é importante demarcar nossa função institucional, distinta das funções de outras carreiras jurídicas, como o Ministério Público (MP), por exemplo.
Há alguns anos, a instituição trabalhava muito com a ideia de ser um equivalente ao MP. Mas o MP tem uma função específica, dirigida à fiscalização, ao controle de legalidade, além da que deveria ser a principal deles, a persecução penal. Já a AGU está muito ligada à governança, seja pelo assessoramento jurídico, seja pela defesa em juízo dos atos de governo e das autoridades.
Em 2001, 2002, o Ministro Gilmar Mendes provocou a realização de uma série de alterações na Lei 9028/95, criando espaços de competência dirigidos à AGU. A possibilidade de conciliação, por exemplo, começou com um artigo bem pequeno que autoriza a AGU a funcionar como agente conciliador. Hoje existem câmaras, conciliações em questões complexas, com muitos casos solucionados. Cresceu muito também o espaço da defesa de autoridades, que começou na Lei 9028/95 e, hoje, é uma das funções principais da AGU. No dia 30 de março deste ano, instalamos um escritório da AGU na Câmara dos Deputados e também já possuímos um no Conselho Nacional de Justiça.
CE: Recentemente, foi apresentada junto ao STF a proposta de súmula vinculante no 52, que trata da exclusividade do exercício de cargos públicos jurídicos por membros da carreira da AGU. Como V. Exa. enxerga essa iniciativa?
Ministro: Esse é um tema de discussão relevante para todo o serviço público, e não só para a advocacia pública. Temos um problema do ponto de vista da gestão que se refere à Burocracia de Estado. A Constituição Federal criou uma série de prerrogativas que gerou nessa Burocracia um forte senso de autonomia. Podemos chamar de “autotutela da coisa administrativa”, ou seja, a Burocracia gesta, produzindo soluções que atendem aos seus próprios interesses, relativos a garantias, benefícios, vantagens. Isso é recorrente.
Além disso, é uma Burocracia que, historicamente, se preocupa com controles, especialmente devido à ausência no Brasil de mecanismos de monitoramento do Estado pela sociedade, como as figuras de ombudsman que existem em países como EUA e Espanha. A Burocracia brasileira se coloca como um agente executor de lei, o que a torna muito quadrada, muito regulada e, ao ser regulada, também regula, exige condutas, fiscaliza, aplica multa, exerce autoridade.
Portanto, diante dessas características da Burocracia brasileira, o governo precisa ter formas de garantir a governança, pelo que, além da profissionalização dos servidores e da garantia de uma faixa de comissionamento reservada a eles, é preciso garantir que certos cargos sejam providos livremente pelos agentes políticos.
Não vivemos em uma ditadura, vivemos em uma sociedade democrática. E o Presidente não é uma pessoa que deve ser esterilizada no seu comando. Ele só consegue governar se tiver a liberdade de compor a direção da máquina com agentes com os quais tem afinidade, que estejam de acordo com aquilo que ele se comprometeu a realizar, com seu programa de governo.
O ideal, portanto, é a formação de um quadro que o governo escolhe dentro e fora da Burocracia. Essa liberdade é necessária. A exclusividade pretendida em uma súmula vinculante, por exemplo, tiraria essa possibilidade, o que é um absurdo. Primeiro, porque a matéria é de lei complementar, por se referir à organização e ao funcionamento da AGU. Segundo, porque a lógica da Burocracia é muito corporativa, ela exerce fortemente uma política patrimonialista, se porta de maneira quadrada, regula e é regulada.
CE: A responsabilidade dos advogados públicos é um tema que tem suscitado muitas divergências, especialmente quanto à emissão de pareceres jurídicos. O TCU, recentemente, adotou a tese da corresponsabilidade do advogado em relação aos gestores públicos quando o parecer é vinculante, sendo apontado como precedente o Acórdão no 675/06 do Plenário. Qual a opinião de V. Exa. sobre essa tese?
Ministro: Sou contra essa tese. O advogado público, para exercer sua profissão, ao bem da governança, adota opiniões que tensionam com o status quo. O governo eleito lida com tensões decorrentes de um status quo que não é por si só capaz de resolver os problemas da realidade, por exemplo, pobreza, saúde, educação. É a velha tensão entre os paradigmas institucionais e as necessidades reais, sendo que os paradigmas criam uma série de limitações e as necessidades exigem soluções urgentes.
Lembro-me que quando o Ministro Gilmar Mendes recebia, como Advogado-Geral, propostas de pareceres cuja pergunta havia acontecido há 5 anos, ele dizia: para que estou respondendo? Há utilidade nessa resposta? O problema persiste? Eram pareceres oceânicos, em que ele se afogava, de 60, 70 laudas.
Os bons advogados públicos produzem respostas rápidas, preocupam-se em soluções urgentes para os problemas, o que é muito difícil, é algo delicado.
Na prática, esse bom advogado, que responde rápido, que apresenta soluções, se responsabilizado pela ação da Administração Pública amparada em seu parecer, se torna conservador. Não se pune o “não”, só se pune o “sim”.
Esse advogado, então, que se tornou conservador, não vai mais produzir soluções e sim impossibilidades, porque isso é mais seguro e confortável para ele.
CE: O Advogado Público deve se comprometer com a governabilidade?
Ministro: Sim. O advogado público tem que ser capaz de se envolver, tem que viabilizar a governança. E isso não significa criar conivências com o abuso ou com irresponsabilidades. Nesse sentido, defendo que temos que punir erros graves e temos que punir por pareceres produzidos dolosamente.
Agora, não pode gerar punições um parecer que foi produzido com consistência e razoabilidade, mesmo que não adote a principal doutrina, mas trabalhe com jurisprudência, trabalhe com doutrinas razoáveis.
CE: Quais os benefícios da atuação coordenada da AGU perante o Tribunal de Contas da União?
Ministro: O TCU precisa conviver com o contraditório. Normalmente, o governo presta ao TCU informações e o processo segue solto sem ninguém acompanhar. Dessa forma, não se exerce um contraditório legítimo. Tivemos um caso da Polícia Federal (PF) que ilustra bem isso. O MPOG, após a Emenda 41/2003, que extinguiu os períodos fictos, entendia que aqueles que já eram servidores têm direito a uma contagem proporcional desse tempo, e foram então concedidas várias aposentadorias na PF com base nesse entendimento. O TCU, quando analisou esses atos de concessão de aposentadoria, negou os registros.
A PF quis saber o que iria acontecer concretamente. Percebeu-se, então, que o servidor, há anos em casa, afastado das funções, voltaria à ativa, teria que fazer meses de curso, e já poderia se aposentar novamente. Nesse momento, constatou-se que o custo de incorporação seria maior que o custo de manutenção. Levou-se essa ponderação ao TCU, visando modular a decisão. Dessa forma, ficaria assentada a impossibilidade de cálculo desse tempo ficto em futuros casos, mas não seria determinado o retorno dos já aposentados, por economicidade e eficiência. Nesse caso, foi essencial o diálogo estreito da AGU com o TCU, a demonstração dos impactos da decisão na realidade concreta.
CE: Quais são os principais questionamentos do TCU em relação à ação do Poder Executivo?
Ministro: Esse é um ponto muito interessante. A maioria dos impasses colocados pelos órgãos de controle em relação às ações de governo não se referem a casos de corrupção. A maioria dos casos são problemas de conformidade com a lei. Discute-se, por exemplo, se é lícita a contratação que uma empresa pública faz segundo um modelo simplificado previsto em um decreto, se era preciso lei específica. Esse tipo de questionamento refere-se a regras de conformidade, não trata de improbidade, de desonestidade.
CE: Como V. Exa. enxerga a estrutura atual do Estado brasileiro?
Ministro: Na estruturação de uma sociedade democrática, desde 1988, se deu muito espaço e importância aos Poderes Legislativo e Judiciário, e o Executivo, que era até então o núcleo de autoridade, teve que encolher. Esse processo levou à redução da máquina pública, o que acabou com muitos setores, inclusive com o DASP (Departamento de Administração e Serviço Público), onde estava toda administração da máquina pública, de pessoal. Passados 10 anos, o Executivo lidava com 25% do dinheiro que antes possuía. Ao mesmo tempo, as demandas dos cidadãos aumentaram.
A capacidade do Estado não é algo que se constrói de um dia para a noite, é necessário ter tempo, formar pessoas, formar quadros, incorporar gente. A AGU é exemplo disso. Hoje temos 8 mil advogados, mas isso levou muito tempo.
Um problema grave nessa estruturação do Estado é o fato de que cada carreira tem sua pretensão a maior legitimação do que as outras, e não percebem que, na verdade, o elemento chave de funcionamento do Estado é a integração, a capacidade de conciliar todas as diferenças e buscar uma solução, porque, ao final, o prejudicado não é o agente publico, é aquela pessoa no norte do país que estava em prisão provisória há 14 anos, é a moça que foi presa numa cela cheia de homens, é o cidadão que vai ao posto de saúde e não recebe atendimento. O povo é quem sofre, e temos que nos responsabilizar por isso, pensar nas consequências de nossas ações. Nesse ponto, a burocracia é muito irresponsável, porque ela tende a não enxergar o bem-estar do povo como um problema imediato, é algo distante, mediado por processos, por papel.
CE: Quais foram as consequências práticas da aprovação da Emenda Constitucional no 45 e das reformas processuais advindas da política de Reforma do Judiciário?
Ministro: A principal consequência da Reforma, de maneira geral, tem sido o aumento da capacidade do Judiciário de responder aos desafios que lhe são colocados. O CNJ, nesse cenário, é muito importante. Além disso, os tribunais superiores têm dado uma nova roupagem ao processo decisório.
O Judiciário, antes da EC 45/2004, exercia ao extremo o que eu chamo de uma jurisprudência defensiva. Você apresentava embargos de declaração para poder futuramente questionar uma matéria, o tribunal não conhecia os embargos, você entrava com recurso dessa decisão, o tribunal não conhecia o recurso, e assim sucessivamente. E então se aplicavam multas e multas e multas, como se os recursos fossem meramente protelatórios.
E aí vem a esquizofrenia: hoje, quando determinadas decisões em que a AGU não recorreu chegam aos tribunais superiores, decisões proferidas nesse cenário que acabei de descrever, fala-se em relativização da coisa julgada, questiona-se porque a AGU não recorreu, critica-se a ausência do recurso. Como se recurso fosse um processo simples.
O fato é que essa lógica de repetição do “não conheço” tende a sofrer alterações com o advento da flexibilidade trazida pela súmula vinculante, pela repercussão geral e pela sistemática de julgamento de recursos repetitivos. Perceba-se, nesse sentido, que hoje estão cada vez mais reduzidas as hipóteses que o STF chamava de “inconstitucionalidade reflexa”.
Concluindo, a Reforma do Judiciário tem permitido que os Tribunais reduzam uma dimensão processualística, uma jurisprudência processualística, e passem a decidir questões, resolver questões de alta indagação.
CE: Essas ferramentas citadas pelo senhor como agentes de mudança são instrumentos de vinculação da jurisprudência, de “stare decisis”?
Ministro: Esses são instrumentos que permitem ao tribunal selecionar uma matéria relevante e julgá-la, estendendo essa opção decisória aos demais casos em que a exata mesma matéria está sendo discutida, na forma da vinculação. São instrumentos fantásticos, porque o tribunal começa, nessa dinâmica, a tomar decisões.
É importante estudar as consequências da jurisprudência defensiva. Será que ela de fato reduz a litigiosidade? Não é mais eficiente conhecer mais recursos, julgar mais questões de mérito, do que não conhecer e, portanto, não resolver os problemas?
CE: O que muda na Advocacia Pública a partir dessas mudanças?
Ministro: A atuação da AGU muda. Não adianta mais ficar achando que “ah, perdi esse, mas tem o próximo”, porque os processos deixam de ser individuais e passam a ter alcance coletivo. Dessa forma, a atuação da AGU tem que ser muito mais concentrada, ou seja, um recurso no STF que percamos, não adianta tentarmos outro com conteúdo igual, perderemos. A alteração do entendimento é muito difícil, a não ser quando há mudança de composição do tribunal.
O aumento do número de ações de controle concentrado e o efeito concentrado de ações individuais, por meio da edição de súmulas vinculantes, faz com que a advocacia tenha que sair de uma situação generalista, de especialistas em processo, para ter especialistas no direito material envolvido.
Além disso, diante da ideia de modulação, de preocupação da conformidade do direito em relação à realidade, os advogados públicos, além de conhecerem o mérito, de aprofundarem seus argumentos em relação à questão debatida, são obrigados a apresentar ao tribunal não só os argumentos jurídicos, mas a realidade na qual os argumentos estão inseridos, os efeitos da aplicação do direito no mundo fático, na governança. E para que o advogado público consiga fazer isso, ele deve se envolver com o “negócio” do seu cliente, deve conhecer os programas, as políticas públicas, as diretrizes daquele governo democraticamente eleito por cuja consultoria e defesa em juízo é responsável.
CE: O Advogado Público tem, portanto, um cliente?
Ministro: Eu acho que sim. Toda advocacia, por natureza, é uma advocacia de um cliente. Nesse sentido eu digo que nós, da AGU, não somos advogados de Estado, no sentido de um Estado “autônomo”. Advogamos, na verdade, pela governança. Se cada advogado público concebe um Estado, pensa em uma ideia de Estado, teremos várias opiniões diferentes, não há “o Estado”, há o “meu Estado”. Acho mais adequado pensarmos que advogamos pela governabilidade de um grupo eleito democraticamente. Temos um compromisso com a governança, o que não quer dizer que é um compromisso com a imoralidade, com o crime, é um compromisso com ações de governo legítimas, que podem até ser polêmicas, muitas vezes.
Vejamos a questão eleitoral, as críticas que a AGU recebeu pela Cartilha sobre Condutas em Ano Eleitoral, elaborada com o auxílio da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, publicada há algumas semanas [Disponível em www4.planalto.gov.br/centrodeestudos]. Editamos um documento conforme a lei, mas polêmico, que causou resistências, gerou críticas da imprensa, de partidos políticos da oposição ao governo.
Na época do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, defendemos uma situação complexa, referente ao uso pelos ministros de aviões da FAB para viajar. Não era algo popular, mas tivemos que fazer a defesa dos ministros, porque é um papel que nos cabe, competência institucional da AGU. E competência não é só para bônus, é para ônus também.
Agora, o fundamental é que nossa atuação seja consistente, pois é mesmo muito difícil defender uma posição popularmente não aceita.
O advogado faz o que o cliente não pode fazer, vai até onde o cliente não pode ir.
CE: Na defesa do cliente, o advogado público pode agir em sentido contrário ao de suas convicções pessoais...
Ministro: Sim, isso é natural em todo exercício da advocacia. Quando estudante, eu era militante do PT, sempre tive uma visão de que o Estado deve ser forte. Porém, não me recusei a defender a privatização da rede ferroviária federal, porque entendi que o meu papel era esse.
Temos que ter essa clareza, porque se não tivermos, como advogados, nosso trabalho vai ser mal feito, não vamos fazer boas defesas, o que prejudica o exercício legítimo do contraditório, e é o contraditório que produz soluções democráticas.
Lembro uma expressão de Cícero: “Quando só um domina, não existe República”. A República pressupõe as diferenças e as diferenças devem ser postas.
CE: Assim como a Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil (SAJ) mantém este Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, a AGU criou em 2000 o Centro de Estudos Victor Nunes Leal, que em 2005 originou a Escola da AGU. Quais são os objetivos de estruturas dessa natureza para a Administração Pública? Quais serão as principais atividades da Escola em 2010?
Ministro: As escolas mantidas pela Administração Pública buscam sistematizar o conhecimento de áreas especificas, como é o caso do Instituto Rio Branco, mantido pelo Ministério das Relações Exteriores, da ESAF, mantido pelo Ministério da Fazenda. No mesmo sentido, a advocacia pública precisa desse espaço, desses canais de interação e diálogo viabilizados pela Escola da AGU.
Nesse ponto, concordo com Karl Popper, que acredita que o conhecimento não é uma ação isolada. A construção da verdade deriva de uma ação coletiva. Evidentemente, em um momento, alguém pode ter um insight e dar um salto, mas, via de regra, o conhecimento advém de um diálogo permanente. Ninguém se isola em uma sala e fica trinta anos estudando sozinho, e mesmo se faz isso, estuda o conhecimento de outros, produz a partir de um conhecimento instalado.
A necessidade de órgãos como a Escola da AGU e como o Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, portanto, está na relevância de sistematizar estudos, trocar experiências, produzir fluxos de diálogos com a área privada e com outras realidades da área pública. Deve-se permitir que a prática e o conhecimento vivam em interação constante, produzindo novos saltos.
CE: Finalizando esta entrevista, gostaríamos de saber quais são as expectativas da AGU em relação aos próximos anos. Quais são os principais desafios para o futuro da Advocacia Pública brasileira?
Ministro: A AGU tem que se organizar, atualizar seu marco regulatório aos novos desafios que ela está enfrentando. Nossa lei orgânica é de 1993, precisa de reparos. Além disso, temos que avançar quanto aos espaços de conciliação. Nosso objeto de trabalho não é a lei, a lei é um instrumento. Nosso instrumento de trabalho é o conflito, com o qual lidamos diariamente.
Em todas as áreas em que trabalhei, minha função não foi produzir um parecer excepcional, mas conseguir dar solução aos problemas. O advogado público deve deixar de ser um profissional que fica oito horas por dia fechado em um escritório, o que é muito típico da burocracia, e tornar-se um advogado que se envolve com o problema de seu cliente, relaciona-se com ele para procurar soluções. Cada vez mais, deixamos de falar em advogados como leitores de leis para falarmos em administradores de justiça, administradores de sistemas jurídicos, operadores jurídicos.
O Estado brasileiro tem pela frente o desafio de responder melhor às necessidades da sociedade, relacionar-se melhor com seus atores, resgatar a legitimidade que se perdeu por conta da deterioração da burocracia em um passado recente. Há um reclame muito forte por um Estado menos autoritário, mais integrado e relacionado. O papel da AGU é fundamental nesse processo.