Você está aqui: Página Inicial > Entrevistas > Anahi Guedes de Mello e o debate sobre gênero e deficiência

Anahi Guedes de Mello e o debate sobre gênero e deficiência

Inaugurando a seção de Destaques do Mês do Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência da Presidência da República (PIPD), convidamos Anahi para contribuir com o debate acerca de gênero e deficiência.

Anahi

Anahi é antropóloga, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora vinculada ao Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) e ao Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NED), ambos na mesma universidade, em Florianópolis. É também pesquisadora associada da Anis – Instituto de Bioética, sediada em Brasília. Feminista, militante nas áreas de políticas para mulheres, de promoção dos direitos da pessoa com deficiência e do movimento LGBT, agregando as qualidades de pesquisadora às de ativista na defesa de direitos humanos.

Além de autora de publicações sobre o tema e ser uma das precursoras do debate sobre capacitismo no Brasil, recentemente Anahi ministrou a Oficina de Gênero e Deficiência, promovida pelo PIPD em parceria com o Coletivo de Mulheres com Deficiência do Distrito Federal e a Escola de Gente – comunicação e inclusão.

Programa de Inclusão de Pessoas com Deficiência da Presidência da República (PIPD): Anahi, conte-nos um pouco de você, como você se identifica?

Anahi: Nasci em maio de 1975, sou “manezinha da ilha”, como é carinhosamente chamada quem nasce em Florianópolis, onde permaneço residindo com minha companheira. Venho de uma família de classe média, meu pai era empresário de uma fábrica de torrefação de café e minha mãe professora de Psicologia Educacional. Com o diagnóstico da minha surdez em tenra idade, minha mãe largou o emprego e desistiu do mestrado em Psicologia Educacional para se dedicar a mim. Meus pais já tinham outro bebê, com 11 meses de diferença entre nós, por isso foi difícil cuidar de dois bebês, ainda mais uma sendo surda e necessitando de maiores cuidados. Aos 3 anos operei em São Paulo o ouvido esquerdo, numa tentativa de estacionar minha perda auditiva e corrigir meu problema de equilíbrio corporal, que era grave. Perdi toda a audição do lado esquerdo do ouvido, restando apenas 10% no lado direito. Depois da operação, passei a usar aparelho auditivo em formato caixinha e fiz fonoterapia praticamente por toda a infância. Em casa minha mãe me auxiliava no aprendizado da fala, escrita e leitura. Isso tudo durou até os meus 9 anos. Paralelamente a isso, tive uma infância feliz interagindo com outras crianças da minha idade, frequentando o ensino regular da Escola Dinâmica e fazendo esportes. Gostava muito de jogar futebol, brincar de boneca e de carrinho e praticava karatê. Depois dessa escola, fui para o Colégio Coração de Jesus, onde primeiro estudei dois anos em uma "classe especial", para em seguida retornar à "classe regular", primeiro por um ano no Colégio Barddal e novamente no Coração de Jesus, onde conclui os antigos primeiro e segundo graus. Tudo isso me deu a dimensão da experiência entre "educação especial" e "educação inclusiva". Não gosto muito da palavra “identidade”, pois considero que ela se tornou hoje um dispositivo de controle contemporâneo. Prefiro “identificação”. Tenho identificações com artes marciais, com o feminismo como uma posição política pessoal, com a Antropologia que é a minha formação de paixão, com pessoas que amam cachorros e gatos, com mulheres com deficiência (sou uma), com mulheres lésbicas (sou uma)... enfim, são um leque amplo de identificações que tenho e sou no momento.

PIPD: O que veio primeiro em sua história de vida: as participações em movimentos sociais, os estudos de gênero, ou os estudos sobre deficiência?

Anahi:  As participações nos movimentos sociais de pessoas com deficiência. Primeiro, a partir de 1992 no campo da surdez, convivendo por um breve tempo em uma “comunidade de surdos sinalizados” de São José, cidade vizinha a Florianópolis. Posteriormente, em 1998 eu me transferi para o movimento da deficiência em sua forma mais ampla. Ainda em 1998 tive o primeiro contato com os pressupostos teóricos dos Estudos Surdos, com a leitura de textos sobre “identidades surdas”. O problema é que esses textos estão recheados de “categorias acusatórias”, classificando pessoas surdas em n categorias de identidades surdas, sendo contraproducentes a meu ver, porque nos dividiam em “bons surdos” e “maus surdos”. Os bons surdos seriam os Surdos com “s” maiúsculo, ou seja, os “surdos sinalizados”, aqueles que têm a língua de sinais como primeira língua, sendo adeptos do “Orgulho Surdo”. Os “maus surdos” seriam os “surdos oralizados” e usuários da língua portuguesa como primeira língua, aqueles que falam, fazem leitura labial e usam “tecnologias auditivas”. A fala, a leitura labial e as “tecnologias auditivas” são consideradas pelos “bons surdos” como “coisas de ouvinte” e por isso devem ser rechaçadas. São ideias que não compactuo “nestes termos”, porque na realidade é verdade que a relação ouvinte-surdo não deixa de ser uma relação maioria-minoria, em que a desigualdade se faz evidente também pela via da comunicação e capacidade de ouvir. Então, da mesma forma que o “privilégio branco” ou racismo contra negros e o “privilégio masculino” ou sexismo contra mulheres podem ser, respectivamente, sistemas de opressão baseados na raça/etnia e no gênero, o “privilégio auditivo” ou audismo contra pessoas surdas pode ser entendido como um sistema de opressão com base na capacidade auditiva. Enfim, o fato é que o surdo oralizado em geral não tem a primazia do “reconhecimento surdo”, quer dizer, ele não busca nem tem a pretensão de ser reconhecido primeiro como surdo, mas como pessoa. A surdez para ele é um mero detalhe, faz parte de suas identificações, mas não é algo com a qual tenha uma identificação principal. E eu me incluo nesta categoria. Por essa razão, por eu não me identificar com os preceitos do “Orgulho Surdo”, acabei indo para o movimento de pessoas com deficiência, mais amplo, convivendo mais com pessoas com outros tipos de deficiência, diferentes da minha.

            A minha inserção nos estudos acadêmicos em gênero e deficiência vieram conjuntamente, exatamente em 2004, como consequência direta de meu ativismo no movimento da deficiência. A aproximação teórica e definitiva adesão ao campo dos Disability Studies ocorreram em meados de 2004, quando li o artigo intitulado “Modelo Social da Deficiência: a crítica feminista”, da antropóloga Debora Diniz (UnB), publicado em 2003 e considerado um marco introdutório da difusão do modelo social da deficiência e da interface desta questão com as teorias feministas no Brasil. Então, note bem, os estudos sobre deficiência chegam ao Brasil nos anos 2000, já imbuídos das reflexões da epistemologia feminista, trazidas pelas feministas que são a segunda geração de teóricas desse campo. Desse modo, no meu caso não há como falar o que vieram primeiro: os estudos feministas e de gênero ou os estudos sobre deficiência. Entrei nesses campos simultaneamente, posto que vieram “no mesmo pacote”.  

PIPD: Qual sua principal motivação para pesquisar sobre estas temáticas conjuntamente?

Anahi: Como mulher com deficiência eu percebo que a experiência da deficiência se dá de forma diferente para homens e mulheres. Isso quer dizer que a deficiência é uma experiência profundamente marcada pelo gênero. Essa é a principal motivação: não há como estudar deficiência dissociada do recorte de gênero nem de outros marcadores sociais, como a classe e a raça/etnia, por exemplo.

PIPD: Gênero e deficiência são conceitos que remetem a duas formas de discriminação: sexismo e capacitismo. Você considera que estes conceitos já estão amplamente debatidos na sociedade brasileira?

Anahi: Gênero não é “ideologia”, como alguns setores conservadores da sociedade brasileira têm propagado recentemente. Este conceito remete à construção social do que é considerado como atributos masculinos ou femininos ou ainda neutros em cada sociedade, cultura e tempo histórico. Não é o mesmo que sexo, este último deve ser entendido como inerente à biologia, isto é, ser biologicamente macho ou fêmea – ter os órgãos genitais e todas as características sexuais secundárias associadas a cada sexo. Gênero não é algo dado e pré-determinado pela natureza quando a pessoa nasce, embora se criem muitas expectativas sociais que relacionam o gênero ao sexo. O gênero é sempre atravessado por relações sociais de poder, da mesma forma como ocorre com classe, raça/etnia, sexualidade, geração e deficiência. Em geral os movimentos feministas e as teóricas e teóricos do campo acadêmico dos estudos feministas e de gênero têm clareza e debatem bem os sentidos e significados dos conceitos de gênero, feminismo e sexismo, mas não em relação aos conceitos de deficiência e capacitismo.

Já na temática da deficiência há tensões entre academia e militância. Da base ativista da deficiência de onde venho, que é o movimento brasileiro de vida independente, percebo certas tensões nos debates que travo com alguns colegas em relação a conceitos e categorias analíticas que trabalho na academia. Por exemplo, alguns não gostam do cuidado, termo preferido das feministas e que é também uma categoria central da teoria feminista da deficiência. A justificativa é que para eles o cuidado está associado à doença, um ranço que sempre pautou a compreensão da deficiência ao modelo médico e por isso aconselham evitá-lo. Assim, ao invés de "cuidadoras" e "cuidadores", recomendam um termo mais “neutro”, que é “atendentes pessoais”. Outro exemplo dessa tensão está justamente na categoria capacitismo que há alguns anos venho propondo para qualificar e dar nome a toda discriminação por motivo de deficiência. Capacitismo é um debate ainda em aberto entre meus pares acadêmicos do campo dos estudos sobre deficiência, mas que dentro do movimento da deficiência ainda há quem o desaconselha por considerá-lo um termo eufemista. Isso mostra a relativização do foco acadêmico, à medida que ativistas dos movimentos da deficiência se opõem a conceitos e categorias das pesquisadoras e pesquisadores ao referendar a partir da experiência vivida da deficiência. Assim como algumas feministas dos movimentos sociais já acusaram feministas da academia de “generólogas”, também sou chamada, implicitamente em tom acusatório, de “deficientóloga”.

PIPD: Como você articula o debate sobre o enfrentamento às formas de violência de gênero e o capacitismo?

Percebo em movimentos localizados de mulheres com deficiência duas grandes pautas: acessibilidade e enfrentamento às violências de gênero. São pautas genuínas, ainda que considere importante também outras pautas, como as “políticas de cuidado” e a “assistência sexual” para pessoas com deficiência, em que ambas também têm uma dimensão de gênero. Mas destaco as duas primeiras porque também estão genuinamente relacionadas, posto que mulheres com deficiência têm dificuldades de acessar os serviços de denúncia e atenção às vítimas de violências de gênero devido à falta de acessibilidade.

De modo geral, é preciso destacar que inexistem dados sobre a magnitude das violências contra mulheres com deficiência, seja pela conjunção de gênero e deficiência ou apenas pela dimensão da deficiência. Os poucos estudos nacionais, amparados em referências internacionais, evidenciam o argumento da maior vulnerabilidade de mulheres com deficiência a sofrer violências na esfera doméstica e familiar. Os dados analisados comprovam a tese de que são essas mulheres as mais vulneráveis a sofrer abusos, maus-tratos, lesões, abandono e negligências por parte de familiares e agentes estatais. Na minha dissertação de mestrado, uma das coisas que mostro é que as violências contra mulheres com deficiência ora são uma expressão do gênero, ora são motivadas pela deficiência ou ainda são o produto da polarização entre gênero e deficiência. Então vai depender do contexto e da descrição de cada caso. Quando são motivadas pela deficiência, é aí que entra o capacitismo ou “violências capacitistas”. Claro que em outros contextos há o efeito potencializador da deficiência nas violências de gênero. Também mostro que, contrariamente ao apontado na mídia e em publicações feministas sobre violência doméstica contra a mulher no âmbito conjugal, em que a dependência financeira e emocional são os principais motivos pelos quais as mulheres desistem ou desistiam de denunciar seus agressores, a maioria homens, nas violências contra mulheres com deficiência essas motivações ficam em segundo plano, pois a primeira grande pergunta que emerge é: “Quem vai cuidar de mim?”. Essa “rede de cuidados” geralmente inclui pessoas de sua rede de parentesco, majoritariamente mães, pais, irmãos, irmãs, filhos e filhas que, em maior ou menor grau, cuidam ou deveriam cuidar da/do sua/seu filha/filho, irmã/irmão e mãe/pai com deficiência. Também podem envolver a participação de profissionais das áreas de saúde ligadas ao cuidado, principalmente dos campos da Enfermagem, Mastologia e Ginecologia. Desse modo, as violências contra mulheres com deficiência não ocorrem majoritariamente no contexto das relações conjugais entre marido e mulher, mas envolve principalmente outras pessoas de suas relações de parentesco, tendo maior proximidade com os debates teóricos sobre as violências contra pessoas idosas, justamente porque pessoas com deficiência e idosas ambas canalizam o contorno dos corpos com impedimentos que necessitam dos "mesmos cuidados".